GNL - Planejamento Tributário Quais os Limites

Planejamento Tributário: Quais os Limites?

Autor: Guilherme Costa Val
LL.M. em Tributação Internacional pela University of Florida;
Mestre em direito pela Faculdade de Direito Milton Campos;
Especialista em Direito Tributário pelo IEC PUC/MG;
Professor do LL.M. em Tributação Internacional da PUC/MG.

1. Introdução

A zona cinzenta quanto aos limites dos planejamentos fiscais ou tributários tem se feito presente ao longo dos últimos anos.

Fraude à lei, simulação, simulação relativa, dissimulação, negócio jurídico indireto, propósito negocial e essência sobre a forma são conceitos usualmente utilizados quando se trata do tema, na tentativa de regulamentar transações que, apesar de lícitas do ponto de vista estrutural e formal, causam estranheza à figura abstrata do “homem médio”, parecendo-lhe violar a lei em espírito, em essência.[1]

Com o desenvolvimento econômico, o Brasil passou a gerar transações mais sofisticadas e em muitos casos as referidas sofisticadas operações, realizadas em um sistema altamente globalizado, são analisadas mediante escrutínio descontextualizado e pouco transparente da administração pública e, mesmo revestindo-se de toda legalidade formal, acabam por ser rechaçadas sob o manto da mácula de prática simulada.

Tal análise tem se arrimado em institutos civilísticos, especialmente ante a inaplicabilidade do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional como norma geral antielisiva ou antievasiva, haja vista a ausência de sua regulamentação, porém, a jurisprudência e doutrina têm dado maior ênfase ao instituto da simulação quando da análise de planejamentos complexos. Ao dispor sobre o tema, o Código Civil determina que o negócio simulado é nulo, porém, o negócio dissimulado pode subsistir caso seja válido em substância e forma, veja-se:

“Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.
§ 1o Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:
I – aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;
II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;
III – os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.”

Parte da doutrina tradicional acerca de simulação – instituto que já se fazia presente no Código Civil de 1916 – apresenta visão restritiva sobre o tema, vinculando a análise da simulação única e exclusivamente ao preenchimento ou não dos aspectos formais do negócio.

Trata-se de visão positivista que torna dispensável a análise de qualquer outro aspecto inerente à operação, os fundamentos negocial e econômico seriam irrelevantes: para que se verifique simulação, há que se fazer presente uma declaração enganosa, contrária à vontade das partes, visando iludir terceiros. Assim, havendo declaração de vontade fiel aos fatos (v.g. a cisão ou incorporação declarada efetivamente ocorreu já que devidamente operacionalizada dentro das formas legais) não há que se falar em simulação. Trata-se, em última análise, da prevalência da forma sobre a substância.[2]

No entanto, há também a aplicação mais ampla do conceito de simulação, tal como defendida por Orlando Gomes[3]. Referida corrente passou a afastar o formalismo para implementar a visão causalista da simulação. Assim, o negócio perfeito do ponto de vista formal, porém visto como não verdadeiro do ponto de vista da causa do negócio jurídico acabaria por se enquadrar no tipo simulação.

De acordo com a corrente causalista, o negócio jurídico atípico, sem sentido do ponto de vista econômico social, poderia ser enquadrado como simulação independentemente de sua regularidade formal ou aparente legalidade.

No que diz respeito à análise dos casos concretos, o antigo Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, hoje CARF, manifestou-se por vezes acerca do tema e, após passear por alguns dos conceitos mencionados, parece ter deixado de adotar a corrente clássico-formalista ou voluntarista[4] acerca da simulação, prevalente até ano de 1996, para passar a estabelecer a necessidade de aplicação ampla do instituto da simulação quando da análise de reorganizações societárias e planejamentos tributários.[5]

Atualmente, reina no CARF a exigência de substância econômica ou logística para a validade de operação lícita do ponto de vista formal, porém, vistas de certa forma como atípicas. De acordo com os mais recentes entendimentos do CARF, havendo respaldo econômico, logístico ou negocial capaz de arrimar operação lícita, não há que se falar em nulidade. Por outro lado, reorganizações societárias ou planejamentos realizados dentro dos ditames da lei, porém, sem qualquer propósito negocial além da redução da carga tributária, tendem a ser considerados ilícitos. Há, pois, simulação, quando presente uma desconformidade entre o desejado e o praticado (não se deseja uma incorporação, mas realiza-a em virtude de objetivo final oculto, qual seja, obtenção de benefício fiscal), porém, tal subjetiva desconformidade vem sendo analisada sob a ótica do propósito do negócio praticado.

De fato, avaliar a regularidade formal do negócio não requer grandes esforços, bastando-se confrontar os atos praticados com as formalidades prescritas em lei, contudo, como se deve analisar a presença dos demais elementos subjetivos da simulação no negócio praticado? Nessa linha, questiona-se: seria válida a análise da simulação mediante utilização do teste do propósito negocial ou haveria outras formas mais eficazes de se identificar a presença de indícios de simulação nos negócios jurídicos?

2. Compreendendo o “Business Purpose Test” e seus Principais Padrões

O teste do propósito negocial foi criado no ano de 1935 pela Suprema Corte dos Estados Unidos quando da necessidade de se avaliar a existência de “substância” em operação praticada por determinada contribuinte.
Em Gregory v. Helvering[6], a contribuinte (Sra. Gregory) detinha 100% das ações da empresa United Mortgage Corporation (United). A referida empresa, por sua vez, detinha 1.000 quotas da empresa Monitor Securities Corporation (Monitor). O valor de mercado das quotas excedia o valor contábil e a Sra. Gregory pretendia alienar as referidas 1.000 quotas de forma a ter acesso direto (pessoa física) ao resultado financeiro da alienação.

O primeiro método para tanto seria a distribuição das quotas da Monitor à contribuinte a título de dividendos e posteriormente sua alienação pela Sra. Gregory. Contudo tal opção resultaria na tributação dos dividendos no valor das quotas[8] e a Sra. Gregory visava atrair a incidência da benéfica tributação sobre ganhos de capital. A Contribuinte, então, criou uma nova empresa e utilizou-se de mecanismo do Código Tributário dos EUA[9] que previa isenção nos casos em que determinada empresa, parte de reorganização societária, distribuísse a seus acionistas quotas que detinha em outra empresa, também parte da reorganização societária e obteve, assim, a benéfica tributação do ganho de capital[10].

Ao analisar a operação, a administração pública (“Commissioner”) decidiu por questioná-la sob a alegação de que a empresa criada no contexto da reorganização societária (Averill) jamais possuiu substância e que, sendo assim, sua existência deveria ser desconsiderada para efeitos fiscais.[11]

O caso chegou à Suprema Corte norte-americana e o tribunal entendeu que, não obstante o direito do contribuinte tentar reduzir o montante de tributos a serem recolhidos ou até mesmo evitá-los legalmente, havia que se verificar se o ato praticado se coadunava com a intenção do legislador.

Nessa esteira, a Suprema Corte dos EUA viu-se diante do mesmo dilema que aflige os tribunais brasileiros hodiernamente (como analisar a presença de substância no negócio jurídico realizado?) e utilizou-se do “business purpose test” para solucionar o impasse: inexistia propósito negocial (causa) que embasasse a existência da Averill já que a mesma serviu como mero instrumento criado com o escopo único de viabilizar o tratamento benéfico concedido a tais

reorganizações societárias, deixando de existir em seguida sem que jamais tivesse participado de qualquer outra operação, razão pela qual a reorganização operada deveria ser desconsiderada.

Após o julgamento, a doutrina do propósito negocial acabou por desdobrar o teste em três principais padrões[11]:

Transações fictícias (sham transactions): o teste do propósito negocial é aplicado para desconsiderar a existência de uma entidade e/ou o benefício por ela obtido (direta ou indiretamente) quando a sociedade não apresenta razão de existir, servindo ao propósito único de promover economia fiscal;

Transações fora da Realidade Econômica: aplica-se a casos em que a transação é praticada dentro dos contornos da lei e envolve relações reais (a empresa não é um mero veículo e não possui caráter transitório), porém a transação ou reorganização revela-se economicamente irreal na medida em que não teria sido realizada não fossem os resultados fiscais obtidos;

“Step Transactions”: Um determinado resultado em um caminho linear não pode ser alterado em razão de utilização de caminho tortuoso injustificado (utilização de série de operações). O teste do propósito negocial pode ser aplicado para se determinar a necessidade ou não da desconsideração de passos adotados em separado para que se analise a transação como um todo, em atenção a seu resultado final.

Em que pesem os notórios preconceitos em relação à utilização do teste no Brasil, parece nítida a semelhança entre suas facetas e a doutrina causalista da simulação – como se demonstrará a seguir -, na medida em que as indagações a serem realizadas com fito a identificar-se a presença de indícios de prática simulada são, via de regra, as mesmas. Note-se que, usualmente, o teste do propósito negocial representa meramente a idéia de que a validade das operações, especialmente quando atipicamente resultam em benefício tributário, pode ser avaliada também pelo ponto de vista de sua razoabilidade econômico-social podendo e devendo o teste ser acompanhado de outras análises, de acordo com o caso[12].

De toda forma, vejamos exemplos da utilização da doutrina causalista de simulação e do teste do propósito negocial na prática:

3. A presença do “business purpose test” nas Decisões Administrativas

No ano de 1996 o antigo Conselho de Contribuintes apreciou recurso voluntário (Caso Rexnord[13]) onde se discutia a presença de simulação em operações do contribuinte (série de cisões que culminaram com incorporação atípica, ou reversa, das empresas superavitárias pelas deficitárias).

Na oportunidade, o Conselho pugnou pela desconsideração da operação sob o argumento que, nas palavras do Relator, “a empresa rica (…) sistematicamente incorporou de fato as empresas pobres. (…) Extintas foram as outras empresas, cindidas parcialmente e por ela incorporadas.”

A análise do Relator, conselheiro Verinaldo Henrique Silva, abordou intrinsecamente parâmetros típicos do “business purpose test” na medida em que confrontou a documentação acostada aos autos relativa à declaração de vontade expressa com os efeitos efetivamente almejados. Obviamente, para delimitar os efeitos almejados, caso diverso do que ostensivamente indicado, houve que se questionar os propósitos de tal operação nos exatos termos dos testes sugeridos pelo “Business Purpose Test”: não havia razão logística ou negocial para as operações realizadas e, de fato, não havia continuidade dos negócios por parte da empresa incorporadora, mas sim pela incorporada. Não havia, pois, substrato econômico capaz de respaldar a operação.

No julgamento do caso Martins[14], que também tratou de incorporação às avessas, a lógica utilizada foi a mesma; contudo, o relator entendeu pela existência de substrato econômico na operação. Necessariamente houve que se questionar a causalidade da operação, utilizando-se alguns dos testes inerentes à doutrina do “business purpose”: há razão logística ou econômico-social para a operação? Em sessão de 01/02/2012 o CARF também aplicou implicitamente o teste do propósito negocial ao julgar caso rotulado como operação de “casa-e-separa” supostamente realizada para eliminar ganho de capital em operação de alienação de ativos disfarçada de parceria (caso Klabin).[15]

Na referida hipótese o conselheiro relator se convenceu da presença de simulação pelas seguintes razões: a) a associação entre as empresas durou menos de 30 dias, logo o intuito de parceria jamais teria existido; b) as operações, da forma como se apresentam, somente foram realizadas em virtude de benefícios fiscais que proporcionaram (não-tributação do ganho de capital e aproveitamento de ágio), não possuindo maiores substratos logísticos ou econômico-sociais.

Trata-se, portanto, de clara utilização de testes da doutrina do propósito negocial (transações fora da realidade econômica) na tentativa de se definir a real vontade das partes ou a relação de causalidade, oculta na espécie por série de atos jurídicos. Note-se que o relator também se utilizou do teste da continuidade do empreendimento[16] para determinar que o ínfimo prazo entre o “casa e separa” denotaria presença de divergência entre a vontade formalmente materializada e a realidade dos atos.

Ainda em recente acórdão, o CARF identificou como simulada a operação de subscrição de ações de uma sociedade anônima com integralização em dinheiro e registro de ágio e subsequente retirada da sócia originária com resgate das ações e posterior cancelamento. Ao apreciar o caso, o conselheiro relator tratou expressamente da necessária causalidade em negócios jurídicos alegando que “Para se identificar a natureza do negócio praticado pelo contribuinte, deve ser identificada qual é a sua causalidade(…). Assim, negócio jurídico sem causa não pode ser caracterizado como negócio jurídico indireto.” [17]

No caso em apreço, o relator entendeu pela falta de substância que embasasse as transações: a estrutura não teria sido utilizada caso o aproveitamento do ágio fosse inviável e os fatos demonstram a inexistência de continuidade do empreendimento, em contraste à vontade declarada. Mais uma vez, como teria o relator atingido tal conclusão? A base do raciocínio é que um negócio jurídico sem causa nada mais é que um negócio jurídico sem propósito. Para identificar a causalidade do negócio fez-se mister definir sua realidade econômico-social: há propósito econômico-social ou logístico para tal transação? A realidade se adéqua ao objetivo declarado?

Seria a transação realizada caso o benefício tributário não existisse? Os fatos demonstram continuidade do empreendimento formalmente apresentado?

Todas as indagações realizadas – mesmo que quase sempre de forma implícita – são partes do teste do propósito negocial e as conclusões materializadas na decisão são, em verdade, respostas à aplicação dos referidos testes, em seus vários padrões, quando da análise da causalidade das operações para determinar a presença ou não de simulação.

Há mais. Em situação envolvendo exportação para pessoa vinculada que, supostamente, realizaria a revenda do produto no exterior[18], o Conselho de Contribuintes também chegou a aplicar claramente o teste do propósito negocial, perquirindo pela substância logística e estrutural da empresa controlada no exterior, localizada em paraíso fiscal. No caso o Conselho entendeu que a ausência de estrutura operacional das empresas controladas pela Contribuinte-Recorrente, aliada ao porte dos negócios praticados e ausência de comprovação das operações de compra e revenda dos produtos denotaria simulação e julgou pelo afastamento da aplicação de normas de preços de transferência e manutenção da cobrança tributária como se a operação se desse diretamente entre a empresa brasileira e o consumidor final no exterior.

Novamente, trata-se de clara aplicação do “business purpose test” para identificar-se a presença de interposição de empresa fictícia, a qual teria sido criada visando redução de tributação no Brasil e acúmulo de rendimentos em paraíso fiscal. Neste caso, o teste da realidade econômica do negócio e o teste da empresa fictícia foram aplicados para que a presença de simulação fosse avaliada e conclui-se pela desconsideração do negócio aparente.

4. A presença intrínseca do “business purpose test” em Decisão Judicial sobre o Tema – O caso Josapar

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região também enfrentou o tema quando da análise de Apelação nos autos de n. 2004.71.10.003965-9/RS. Tratou o caso de operação de incorporação às avessas na qual a Supremo Industrial, detentora de substancial prejuízo fiscal acumulado, incorporou a empresa Suprarroz S.A., superavitária. Nessa esteira, os prejuízos fiscais da Incorporadora foram utilizados para reduzir o imposto de renda e CSLL nos exercícios seguintes. Posteriormente, a Josapar – Joaquim Oliveira Participações S.A. incorporou a Suprarroz S.A.

Em sua apelação Josapar insistiu pela inexistência de simulação sob o argumento de que a operação teria sido realizada dentro dos contornos legais e formais previstos na legislação, com a efetiva incorporação e extinção da empresa incorporada.

No entanto, aplicando claramente o teste do propósito negocial, o TRF4 alegou que, no caso, a operação de incorporação tal como apresentada era economicamente inviável, tendo sido realizada única e exclusivamente para viabilizar o aproveitamento dos prejuízos fiscais da incorporadora.[19] Ou seja, aplicou-se o teste do propósito negocial na “modalidade” realidade econômica do negócio. A Josapar interpôs recurso ao Superior Tribunal de Justiça, que manteve o posicionamento do Tribunal Regional e, mesmo sem entrar no mérito da questão, deu a entender que a análise da realidade econômica, logística, contábil e operacional realizada pelo TRF4 teria sido a forma correta de se avaliar a existência de simulação no caso, ao dispor que:

“(…)11. Para chegar à conclusão de que houve simulação, o Tribunal de origem apreciou cuidadosa e aprofundadamente os balanços e demonstrativos de Supremo e Suprarroz, a configuração societária superveniente, a composição do conselho de administração e as operações comerciais realizadas pela empresa resultante da incorporação. Concluiu, peremptoriamente, pela inviabilidade econômica da operação simulada.” [20]

Parece-nos que o STJ tangenciou o tema e acabou por validar a utilização do teste do propósito negocial (mesmo que aliado a outros testes e análises) como instrumento, diríamos, quase intrínseco, à identificação de prática simulada. Isso porque a análise de demonstrações contábeis em atenção à configuração societária e operações praticadas pela empresa são essenciais à compreensão da realidade econômico-social da operação que, no caso, foi interpretada como irreal sob tais pontos de vista. Seria o negócio aparente economicamente viável? Há razões econômico-sociais ou logísticas que suportem a transação?

Ou seja, aplicação direta do teste do propósito negocial visando à compreensão da realidade econômica do ato praticado para, então, confrontar-se a realidade com a vontade declarada/aparente. Mais uma vez, a teoria causalista encontrou respaldo no teste do propósito negocial quando da verificação de indícios de prática simulada.

5. O Problema das transações ou reorganizações realizadas em cadeia e a aplicabilidade da “step transaction doctrine” como teste inerente à análise de simulação

Outra questão comumente analisada em reorganizações societárias diz respeito às operações praticadas em sequência, em alguns casos, com intervalos mínimos entre si e que parecem, à primeira vista, terem sido implementadas com intuito único de obtenção de vantagem fiscal.

O problema que afligiu as cortes norte-americanas e hoje começa a assolar os tribunais administrativos brasileiros reside em decidir quando a série de operações deve ser analisada separadamente ou em conjunto em atenção ao resultado ou objetivo final. Seriam os testes da “step transaction doctrine” aplicável no Brasil?

Não obstante a constante utilização equivocada do termo no Brasil, a “step transaction doctrine” teve sua origem nos EUA para determinar que o resultado que seria auferido em uma transação direta ou linear não poderia ser distorcido pela interposição de uma série de operações, caso tais operações fossem reprovadas em análises (ou testes) sugeridas pelos tribunais[21]. Com a aplicação dos testes, ante a eventual reprova ou tipificação em um dos padrões sugeridos, as operações estariam sujeitas à aplicação da “step transaction doctrine” e seriam analisadas de forma global e não individual.[22]

Apesar de reconhecerem a inexistência de teste universal capaz de solucionar o problema, as variações sobre os testes para a aplicação da “step transaction” assim foram consolidadas nos EUA: Teste da obrigação contratual: Representa o teste mais restrito. As operações individuais são desconsideradas em atenção ao resultado final se, à época da primeira operação existisse obrigação contratual prevendo as demais etapas;[23]

Teste do resultado final: Representa o teste mais abrangente. As operações individuais são desconsideradas ante à presença de indícios de que fazem parte de uma única operação visando determinado resultado final (intenção das partes); [24]

Teste da Interdependência: As operações individuais são desconsideradas caso se constate que sejam interdependentes de tal forma que as relações legais criadas em uma transação revelam-se estéreis sem a presença das demais etapas.[25]

Desde então as alternativas vêm sendo aplicadas de acordo com o caso na tentativa de determinar a necessidade ou não de desconsideração da operação. Impende salientar que a mera presença de operações em sequência por si só não atrai a aplicação da referida doutrina. A desconsideração da individualidade das transações apenas ocorre em caso de tipificação (ou reprova, dependendo do teste aplicado) em algum dos testes sugeridos. No Brasil os tribunais administrativos têm se utilizado da análise sistêmica das reorganizações societárias em atenção à doutrina ampla de simulação, desconsiderando operações individuais consideradas enganosas:

“OPERAÇÕES ESTRUTURADAS EM SEQUÊNCIA. LEGALIDADE A realização de operações estruturadas em seqüência, embora individualmente ostentem legalidade do ponto de vista formal, não garante a legitimidade do conjunto de operações, quando fica comprovado que os atos praticados tinham objetivo diverso daquele que lhes é próprio. Recurso voluntário negado.”[26]

De fato a utilização do instituto da simulação parece ser suficiente à análise e controle das reorganizações societárias realizadas em cascata, todavia, quer nos parecer que, como aspecto inerente ao teste do propósito negocial, determinados testes da “step transaction doctrine” são usualmente aplicados pelo fisco e até mesmo pelo CARF. Dentre tais testes destacam-se o teste do resultado final e o teste da interdependência das operações, haja vista tratarem-se de questionamentos válidos sobre aspectos nevrálgicos da substância das operações: seriam as operações autosuficientes ou apenas justificar-se-iam caso os próximos passos fossem tomados? Há indícios de que as operações foram planejadas para atingir resultado diverso do que seria alcançado em transação “linear”? Existia obrigação contratual prevendo diversos passos a serem adotados?

Afora situações em que a presença da simulação salta aos olhos, os referidos testes serão necessariamente utilizados, mesmo que intrinsecamente, para se atingir conclusão quanto à presença ou não de simulação e, consequentemente, necessidade ou não de desconsideração da individualidade das transações.

Frise-se: não há outra forma de se analisar aspectos subjetivos de transações em cascata realizadas dentro de estrutura de reorganização societária ou planejamento tributário. A subjetividade da “intenção das partes” não permite elucubrações distorcidas e tampouco aplicação de correntes que privilegiam a forma sobre a substância.

A título de exemplo, vale explorar o caso típico do “casa-e-separa” em que dois contribuintes formam sociedade na qual se aportam imóvel e recursos financeiros e, em curto período de tempo, a sociedade se desfaz com a troca dos bens em liquidação, evitando a incidência do imposto sobre transmissão de bens imóveis – ITBI. Via de regra, a doutrina e os tribunais enxergam em tal estrutura a presença de simulação ou dissimulação: a verdadeira intenção das partes é transferir a propriedade do imóvel sem o pagamento do imposto devido. No entanto, quais os critérios utilizados para se atingir tal conclusão? Como identificar a verdadeira intenção das partes?

Ora, utiliza-se como base à referida conclusão o curto período de tempo da sociedade formada, situação que denotaria a ausência de propósito negocial (descontinuidade do empreendimento ou empreendimento fictício) que justificasse a existência da nova sociedade, já que possui caráter meramente provisório e irreal.

Ou seja, até mesmo em relação à operação apontada à unanimidade como simulada pela doutrina e jurisprudência o propósito negocial e os testes da sugeridos pela “step transaction doctrine” apresentam-se como essenciais ao embasamento da conclusão subjetiva de que “a verdadeira intenção das partes é transferir a propriedade do imóvel sem o pagamento do imposto devido.”

Parece-nos, pois, que os testes da “step transaction doctrine” acabam apresentando-se como questionamentos inescapáveis quando da análise de transações em cascata, podendo ser utilizado preventivamente no momento da criação e implementação de planejamentos e devendo ser aplicado na verificação de eventual simulação em caso concreto.

6. Conclusões

Em conclusão, verifica-se que, caso a aplicação do conceito de simulação no controle de planejamentos seja mantida, o teste do propósito negocial e a “step transaction doctrine” revelam-se essenciais análise à sua aplicabilidade em casos de reorganizações societárias ou planejamentos tributários e vêm sendo utilizados implicitamente pelos julgadores.

A aplicação explícita dos testes e a solidificação de doutrina dispondo sobre suas facetas, contudo, auxiliariam à transparência dos julgamentos como também orientariam as próprias reorganizações societárias e planejamentos tributários, os quais, até então, têm se apresentado como verdadeiros voos no escuro aos aplicadores do direito.

Vale frisar que não se pretende sugerir a adoção de estrangeirismos, mas apenas a aplicação clara e expressa de testes que, apesar de inicialmente desenvolvidos na América do Norte, acabaram sendo parcialmente “importados” para justificar autuações referentes a planejamentos tributários.

Também cumpre salientar que os testes não são exclusivos e/ou excludentes, ou seja, demais situações não englobadas pelos mesmos podem e devem ser avaliadas quando da análise de planejamentos tributários que apresentem indícios de simulação.

De mais a mais, parece claro que, mantida a linha de entendimento atual quanto a validade dos planejamentos tributários, mesmo que não adotados explicitamente, os questionamentos propostos pelo “business purpose /step transaction doctrine” materializam-se como instrumentos de apoio aos aplicadores do direito, especialmente no que tange à realização de testes de aderência em reorganizações societárias e planejamentos tributários.

[1] Exemplo comum eram as operações denominadas de “casa e separa” em que os contribuintes transmutavam a compra e venda de imóvel em integralização ao capital de empresa com subsequente dissolução da sociedade e entrega de valores em espécie ao antigo proprietário do bem, visando evitar a incidência do ITBI).
[2] “Na simulação relativa, pelo contrário, as partes pretendem realizar um negócio, mas de forma diferente daquele que se apresenta. Há divergência, no todo ou em parte, no negócio efetivamente efetuado. Aqui existe ato ou negócio dissimulado, oculto, que forma um complexo negocial único.”.
“(…)a simulação relativa, pelo contrário, as partes pretendem realizar um negócio, mas de forma diferente daquele que se apresenta. Há divergência, no todo ou em parte, no negócio efetivamente efetuado. Aqui existe ato ou negócio dissimulado, oculto, que forma um complexo negocial único.” Venosa, Silvio, Direito Civil: Parte Geral, 4ª ed. São Paulo, Atlas, 2004. pag. 481
[3] GOMES,Orlando. Introdução ao direito civil.Rio de Janeiro, Forense, 1977, pag. 517.
[3] GODOI,Marciano Seabra, Rev. direito GV, vol.8 no.1, São Paulo Jan/Jul 2012
[4] GODOI,Marciano Seabra, Rev. direito GV, vol.8 no.1, São Paulo Jan/Jul 2012
[5] Primeiro Conselho de Contribuintes.Câmara Superior de Recursos Fiscais. Acórdão n.01-02.107, Relator: Verinaldo Henrique da Silva, D.O.U. 02/12/1996

[6] Gregory v. Helvering, Supreme Court of the United States, 1935. 293 U.S. 46
[7] A distribuição de dividendos, via de regra, é tributada nos EUA.
[8] “Internal Revenue Code”, §112(g), 1928.
[9] Seguindo ditames do “Internal Revenue Code” a Sr. Gregory constituiu a empresa Averill Corporation (Averill)  em 18 de setembro de 1928 e, três dias depois, a United transferiu para a Averill as 1.000 quotas da Monitor. Em troca, todas as ações da Averill foram emitidas em favor da Sra. Gregory (trata-se de atalho que teve o mesmo efeito da emissão das quotas da Averill em favor  da United e posterior distribuição de tais quotas a título de dividendos pela United à Sra. Gregory). Em 24 de Setembro Averill foi dissolvida e liquidada mediante a distribuição de todo seus ativos (quotas da Monitor) à sua única acionista, Sra. Gregory. Nenhum outro negócio foi realizado pela Averill.

A Contribuinte alegou que a transferência para a Averill constituía parte de processo de reorganização, eis que a United controlava a Averill, e, portanto, a distribuição das quotas da Averill a ela seria isenta.  As quotas da Averill recebidas tomaram como base parte do valor contábil das quotas da United (US$ 57.325,45) e, imediatamente, a Sra. Gregory alienou as quotas da Monitor por US$133.333,33 apurando ganho de capital de US$76.006,88 (alíquotas inferiores à tributação de dividendos).
[10] A desconsideração da Averill geraria tributação integral do valor das quotas (US$133.333,33) a título de “ordinary income” (alíquotas superiores às utilizadas na tributação de ganhos de capital).
[11] McDaniel, McMahon, Simmons, Federal Income Taxation of Corporations, 3a ed., Foundation Press, pág. 584
[12] Há, contudo, requerimento específico por parte do fisco norte-americano quanto à utilização do “business purpose test” na averiguação de regularidade das cisões. Treasure Regulation §1.355-2(d)(3)(ii). Além disso, via de regra, o teste do propósito negocial é apenas um dos testes utilizados na verificação de substância em reorganizações societárias, as quais ainda podem ser objeto dos seguintes testes, dentre outros:

  1. Teste do Empreendimento/ramo de negócio ativo;
  2. Teste de atividade do empreendimento adquirido nos últimos 5 anos;
  3. Teste da continuidade da participação societária após a reestruturação;
  4. Teste da continuidade do empreendimento.

[13] . Primeiro Conselho de Contribuintes. Câmara Superior de Recursos Fiscais. Acórdão n.01-02.107, Relator: Verinaldo Henrique da Silva, D.O.U. 02/12/1996.
[14] Sétima Câmara/Primeiro Conselho de Contribuintes, Acórdão 107-07.596, sessão de 14.04.2004.
[15] Terceira Câmara/1ª Turma Ordinária CARF, Acórdão 130100.810, sessão de 01.002.2012
[16] Parte da doutrina norte-americana considera o teste da continuidade do empreendimento (“COBE”) como um dos testes do propósito negocial (Jasper L. Cummings “in” “COBE Acquisition is a business purpose”, Tax Analysts).
[17] Acórdão 1401-00.155, D.O.U. de 01.02.2011
[18] Quinta Câmara/Primeiro Conselho de Contribuintes, Acórdão 105-017.083, sessão de 25.06.2008.
[19] Nas palavras do Relator, Des. Dirceu de Almeida Soares: (…)“No caso, era inviável economicamente a operação de incorporação procedida, tendo em vista que a aludida incorporadora existia apenas juridicamente, tendo servido apenas de “fachada” para a operação, a fim de serem aproveitados seus prejuízos fiscais – cujo aproveitamento a lei expressamente vedava.” TRF 4ª Região, AC n. 2004.71.10.003965-9/RS, D.O.U. de 06.09.2006
[20] REsp 946.707/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, J. de 25.08.2009, D.O.U. de 31.08.2009
[21] Minnesota Tea Co. V. Helvering, 302 U.S. 609, 613 (1938).
[21] Note-se que nos EUA a “Step Transaction doctrine” pode, em determinadas situações, beneficiar o contribuinte.
[23] Commissioner v. Gordon, 391 U.S. 83, 96 (1968).
[24] King Enterprises Inc. v. United States, 418 F. 2d 511 (1969).
[25] American Bantam Car Co. v. Commissioner, 11 T.C. 397 (1948).
[26] Sexta Câmara/Primeiro Conselho de Contribuintes, AC n. 106-17.149, D.J.U. de 30.03.2009