O empreendedor em Xeque – O Jogo da renovação contratual do aluguel de um imóvel comercial

O empreendedor em Xeque – O Jogo da renovação contratual do aluguel de um imóvel comercial

Se você cresceu jogando ou gosta de jogos de tabuleiro e é da Região Metropolitana de Belo Horizonte, certamente conhece a “Funtasy Bar e Jogos” e foi surpreendido que o autointitulado “maior bar de jogos da América Latina” situado na parte central da região nobre e boêmia da Savassi, na capital mineira, anunciou o encerramento de suas atividades.

Uma simples leitura das postagens das redes sociais da empresa ou nas matérias publicadas em jornais eletrônicos comunicando o encerramento das atividades da “Funtasy”, é possível se deparar com centenas de comentários sem entender o que aconteceu, uma vez que se tratava de um empreendimento que sempre estava cheio e com filas para entrar.  

Arthur Gomide, proprietário da “Funtasy”, explicou ao site BHAZ o ocorrido: “Nós tínhamos um contrato de cinco anos com o proprietário do imóvel, que optou por não renová-lo”, disse.

Ainda, segundo o proprietário da “Funtasy”, o imóvel localizado no “olho” da Savassi foi vendido para uma grande construtora, que deve construir um prédio no local. Ótimo negócio para o locador, péssima notícia para o inquilino e seu público, certo? E a dúvida de grande parte da clientela nos comentários é: “não existe alguma proteção para os inquilinos nesses casos”?

Uma coisa é certa: não se pode dizer exatamente o que aconteceu no caso da “Funtasy”, já que o teor do contrato entre as partes e as negociações não são públicos, mas, independentemente disso, sabemos que não se trata de um caso isolado, então a situação pode ser explicada de uma maneira hipotética. Você mesmo já deve ter se deparado com outras tantas lojas que, apesar do sucesso de público, simplesmente tiveram que deixar o ponto comercial em razão da extinção do contrato locatício.

Diante desse cenário, que não é incomum, se você for empreendedor ou simplesmente curioso sobre o tema, já deve ter se perguntado se o fim do prazo do contrato de locação de um imóvel comercial é um verdadeiro “xeque-mate” para o inquilino que, por sua vez, deverá simplesmente “arrumar suas malas” e procurar um novo local para formar sua clientela e começar do zero ou torcer para que seus fiéis clientes aceitem a migração de local.

Possivelmente, a primeira resposta que vem a sua cabeça é “sim”. Ora, o locador é o real proprietário do bem, então ele teria o poder de escolher ao fim do contrato de locação se aquela empresa permanecerá ou não em seu imóvel.

 Ocorre que não é bem assim. A constituição de um bom ponto comercial é um primeiro passo para a maioria das empresas, pois lá será formado o seu “fundo de comércio”, com captação da clientela e investimento de tempo e dinheiro para o exercício da atividade empresarial e, diante disso, a legislação prevê uma proteção para os empreendedores nesse caso.  

Portanto, em uma simples reflexão, deve-se ponderar que a completa sujeição do empreendedor-inquilino ao locador (incluindo a fixação de aluguéis abusivos ou o próprio despejo) importaria em significativo impacto na economia, pois a continuidade das atividades comerciais ao longo do tempo é de suma importância para a manutenção dos empregos e a circulação de bens e serviços. 

Dito isto, antes do “xeque-mate” do locador, existe sim uma última jogada do empreendedor-inquilino: no prazo de 1 ano antes da data de finalização do contrato de locação de imóvel comercial em vigor, inicia-se o prazo de 6 meses para ajuizar a chamada “ação renovatória”.

A “ação renovatória” é a ação judicial proposta pelo inquilino contra seu locador para que um contrato de locação comercial seja renovado de modo forçado, mesmo contra a vontade do locador, permitindo que o empresário (inquilino) permaneça conduzindo seu negócio naquele ponto comercial. Mas ela possui um período temporal para ser proposta (1 ano até 6 meses antes do encerramento do contrato de locação) e alguns requisitos que, em breve resumo, podem ser assim elencados:

  • ser o imóvel comercial;
  • ser a locação pactuada por escrito;
  • a locação deve ser pactuada por prazo determinado;
  • o contrato de locação deve ser no mínimo de 5 anos ou a soma dos prazos ininterruptos dos contratos seja de 5 anos;
  • a empresa locatária deve ter no mínimo 3 anos de atuação no mesmo ramo empresarial.

Na hipótese, com o ajuizamento da “ação renovatória” e demonstração do cumprimento dos requisitos legais, o contrato de locação seria renovado pelo prazo máximo de 5 anos e, restando um ano para o fim deste contrato renovado, iniciaria um novo prazo para o ajuizamento de uma nova e segunda ação renovatória de aluguel, que poderia renovar o contrato por mais 5 anos, e assim sucessivas vezes. Ou seja, preenchidos os requisitos, não há impedimento legal para a renovação do contrato de aluguel por mais 10, 15 anos ou qualquer prazo que seja.

Por meio deste instituto, resta protegida a atividade empresarial exercida em imóvel locado e se resguarda o ponto comercial, na maioria das vezes, construído após anos de trabalho e muito suor, sendo, portanto, dotado de proteção jurídica que impede investidas abusivas do locador e tentativas de apropriação do fundo empresarial pela concorrência, no entanto, infelizmente muitos empresários sequer sabem dos próprios direitos.

Cumpre-se reforçar que não se sabe ao certo as condições contratuais que forçaram a Funtasy a encerrar suas atividades, mas, sabe-se que outras tantas empresas perdem os imóveis alugados e pontos comerciais por não saberem da existência e possibilidade da “ação renovatória” e por não terem um assessoramento jurídico adequado durante a fase de elaboração e fechamento do contrato de locação.

Então se você é empreendedor e inquilino, se atente, encerrado o prazo para o ajuizamento da “ação renovatória”, o “xeque-mate” do locador significará sim, o final do jogo. Por outro lado, tanto por ocasião da contratação do primeiro prazo de locação, quanto no momento de eventual renovação, o locador também deve sempre buscar o assessoramento jurídico, sob pena de o jogo passar a admitir uma indefinida e indesejável prorrogação.


DA ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA EXTRAJUDICIAL – NOVA POSSIBILIDADE DE REGULARIZAÇÃO DE IMÓVEIS TRAZIDA PELA LEI FEDERAL Nº. 14.382/22

DA ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA EXTRAJUDICIAL – NOVA POSSIBILIDADE DE REGULARIZAÇÃO DE IMÓVEIS TRAZIDA PELA LEI FEDERAL Nº. 14.382/22

A Lei Federal nº. 14.382/22, advinda da conversão da Medida Provisória nº. 1.085/2021, que teve início de vigência em meados de 2022, trouxe, dentre outras inovações, a possibilidade da adjudicação compulsória extrajudicial de imóveis objeto de promessa de venda ou de cessão, por meio de alteração da “Lei de Registros Públicos” (artigo 216-B, da Lei Federal nº. 6.015/73).

A adjudicação compulsória refere-se ao direito do(a) promitente comprador(a), que, tendo quitado o preço acordado em contrato de promessa de compra e venda de imóvel celebrado, do qual não conste cláusula de arrependimento, diante da injusta negativa do(a) promitente vendedor(a) em lhe outorgar a necessária escritura pública de compra e venda, poderá legalmente exigir a celebração do título de transmissão da propriedade, para fins de registro perante o Registro de Imóveis competente.

Anteriormente à Lei Federal nº. 14.382/22, a adjudicação compulsória de imóveis somente poderia ocorrer na esfera judicial, de forma que, para obter o registro do imóvel em seu nome, seria necessário que o(a) promitente comprador(a) propusesse uma ação de adjudicação compulsória, seguindo o rito previsto no Código de Processo Civil. No julgamento do feito, ao averiguar a conformidade da documentação apresentada, o juiz reconhece a procedência do pedido e determina a expedição da carta de adjudicação, que possibilita o registro da propriedade do imóvel em nome do(a) promitente comprador(a), junto ao registro de imóveis.

Doravante, com o início de vigência da citada lei, passou-se a permitir que o requerimento da adjudicação compulsória, desde que instruído com a documentação legalmente exigida, seja integralmente processado e efetivado perante o registro de imóveis, sem a necessidade da intervenção judicial, portanto.  

Além disso, outra novidade trazida expressamente pela alteração legislativa em comento diz respeito à possibilidade de a adjudicação compulsória ser requerida não apenas pelo(a) promitente comprador(a), por qualquer dos cessionários, promitentes cessionários ou sucessores, como também pelo(a) promitente vendedor(a), que, não raro, também pode ter interesse em promover a regularização (ex.: cobranças de débitos tributários relativos ao imóvel, que permanece vinculado ao nome do(a) promitente vendedor(a), em decorrência da sua não transferência).

Para fins de elucidação, cumpre transcrever o novo dispositivo legal na íntegra:

Art. 216-B. Sem prejuízo da via jurisdicional, a adjudicação compulsória de imóvel objeto de promessa de venda ou de cessão poderá ser efetivada extrajudicialmente no serviço de registro de imóveis da situação do imóvel, nos termos deste artigo.  
§ 1º São legitimados a requerer a adjudicação o promitente comprador ou qualquer dos seus cessionários ou promitentes cessionários, ou seus sucessores, bem como o promitente vendedor, representados por advogado, e o pedido deverá ser instruído com os seguintes documentos: 
I – instrumento de promessa de compra e venda ou de cessão ou de sucessão, quando for o caso;  
II – prova do inadimplemento, caracterizado pela não celebração do título de transmissão da propriedade plena no prazo de 15 (quinze) dias, contado da entrega de notificação extrajudicial pelo oficial do registro de imóveis da situação do imóvel, que poderá delegar a diligência ao oficial do registro de títulos e documentos;  
III – ata notarial lavrada por tabelião de notas da qual constem a identificação do imóvel, o nome e a qualificação do promitente comprador ou de seus sucessores constantes do contrato de promessa, a prova do pagamento do respectivo preço e da caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade;
IV – certidões dos distribuidores forenses da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente que demonstrem a inexistência de litígio envolvendo o contrato de promessa de compra e venda do imóvel objeto da adjudicação; 
V – comprovante de pagamento do respectivo Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI);
VI – procuração com poderes específicos.
§ 2º O deferimento da adjudicação independe de prévio registro dos instrumentos de promessa de compra e venda ou de cessão e da comprovação da regularidade fiscal do promitente vendedor.
§ 3º À vista dos documentos a que se refere o § 1º deste artigo, o oficial do registro de imóveis da circunscrição onde se situa o imóvel procederá ao registro do domínio em nome do promitente comprador, servindo de título a respectiva promessa de compra e venda ou de cessão ou o instrumento que comprove a sucessão.

Antes da edição da Lei Federal nº. 14.382/22, que incluiu o artigo 216-B à Lei Federal nº. 6.015/73 (“Lei dos Registros Públicos”), era o Código Civil que tratava do instituto da adjudicação compulsória, em seus artigos 1.417 e 1.418, atrelando-o, inevitavelmente, à modalidade judicial, conforme segue:

Artigo 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel.
Artigo 1.418. O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel.

Além da vinculação à judicialização, prevista no artigo 1.418, percebe-se que o artigo 1.417, do Código Civil, faz menção a dois requisitos não repetidos na Lei Federal nº. 14.382/22, sendo: inexistência de previsão do direito de arrependimento na promessa de compra e venda; e o prévio registro da promessa de compra e venda no Registro de Imóveis.

Entretanto, o requerimento de adjudicação compulsória, por si só, pressupõe a inexistência do direito de arrependimento na promessa de compra e venda celebrada, eis que o compromisso suscetível a tal direito não propiciaria sua imediata efetividade.

Dessa forma, por óbvio, o adquirente somente faz jus à adjudicação compulsória em caso de inexistência do direito de arrependimento, ou caso este direito não tenha sido exercido a tempo e modo.

Inclusive, há que se destacar que, não sem razão, o procedimento extrajudicial instituído pelo artigo 216-B, da Lei de Registros Públicos, incluído pela Lei Federal nº. 14.382/22, prevê a necessidade de notificação prévia do(a) promitente vendedor(a), oportunidade em que este(a) poderá opor fato que obstaculize o direito do adquirente, sendo certo que, ao fazê-lo, o Oficial Registrador apreciará os argumentos e documentos das partes envolvidas, e, se entender necessário, instaurará procedimento de suscitação de dúvida ou remeterá o(a) autor(a) às vias ordinárias (judicial).

Destarte, respeitosamente, entendemos que a menção legal à inexistência do direito de arrependimento, como requisito para adjudicação compulsória, mostra-se desnecessária, uma vez que poderia ser tratada como qualquer outro fato eventualmente oponível pelo(a) promitente vendedor(a), não havendo diferenciação prática ou procedimental em relação ao objeto da alegação.          Noutro norte, no que tange à necessidade de registro prévio da promessa de compra e venda no Registro de Imóveis, cumpre salientar que tal condição é afastada pela Súmula 239, do Superior Tribunal de Justiça – STJ, que assim estabelece:

Súmula 239: O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.

Assim sendo, não persiste a necessidade do prévio registro da promessa de compra e venda, junto ao Registro de Imóveis, para possibilitar a adjudicação compulsória em favor do(a) promitente comprador(a). Inclusive, a alteração legislativa promovida pela Lei Federal nº. 14.382/22, que possibilita a adjudicação compulsória extrajudicial de imóvel objeto de promessa de venda ou de cessão, sequer faz menção a eventual requisito neste sentido.

De fato, considerando que o objetivo legal é trazer os imóveis para a regularidade, não faria sentido a exigência do prévio registro da promessa de compra e venda no Registro de Imóveis, o que certamente inviabilizaria a efetivação da adjudicação compulsória na maioria dos casos. Por este motivo, acertadamente, foi editada a Súmula 239 pelo Superior Tribunal de Justiça.    

Portanto, para efeito prático, os requisitos documentais necessários à promoção da adjudicação compulsória extrajudicial são aqueles estabelecidos no artigo 216-B, da Lei Federal nº. 6.015/73, alterada pela Lei Federal nº. 14.382/22, conforme redação acima transcrita.

Uma condição comum a ambas as modalidades de adjudicação compulsória de imóvel (judicial ou extrajudicial) é a necessária representação por advogado. Tal requisito mostra-se adequado, tendo em vista que o auxílio técnico, em tese, sempre propiciará a otimização do procedimento, evitando notas de exigências calcadas na deficiência de informações e/ou documentos que não passariam desapercebidos na análise do advogado habilitado.    

Por mera cautela, a fim de evitar entendimentos equivocados, insta promover a diferenciação entre usucapião e adjudicação compulsória. Os institutos divergem na medida em que, na usucapião, é obrigatório que o autor comprove sua posse ininterrupta sobre o imóvel, por determinado período (conforme a modalidade), além de ter agido como proprietário/dono durante todo lapso, e, na adjudicação compulsória, basta somente demonstrar a aquisição do imóvel e sua respectiva quitação.

Logo, a adjudicação compulsória tem por escopo possibilitar o suprimento/substituição da escritura pública de compra do imóvel quitado, quando houver a indevida recusa ou algum impedimento colocado pelo(a) promitente vendedor(a) ou promitente comprador(a) (conforme o caso), possibilitando o registro da propriedade no Registro de Imóveis, em nome do legitimado adjudicante.

Como situações passíveis de regularização por via da adjudicação compulsória, em rol meramente exemplificativo, podemos citar: a) quando o proprietário tabular (ou mesmo o adquirente) do imóvel opõe-se a outorgar a escritura, mesmo após o cumprimento de todos os termos da promessa de compra e venda celebrada; b) ocorrência do óbito do(a) promitente vendedor(a), antes da lavratura da escritura pública de compra e venda do imóvel quitado.

Em suma, para que seja processado e deferido pelo Registro de Imóveis, o requerimento de adjudicação compulsória extrajudicial deve ser instruído com: a) instrumento de promessa de compra e venda (ou de cessão ou de sucessão, se for o caso); b) prova do inadimplemento (recusa do(a) promitente vendedor(a)/comprador(a) em outorgar/receber a escritura), demonstrada por meio da notificação promovida pelo(a) oficial do Registro de Imóveis, que pode delegar o ato ao(à) oficial do Registro de Títulos e Documentos; c) ata notarial lavrada por tabelião de notas, constando a identificação do imóvel e das partes envolvidas, a prova da quitação do respectivo preço e da caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade (conforme o caso); d) certidões dos distribuidores forenses da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente, comprovando-se a ausência de litígio envolvendo a promessa de compra e venda do imóvel; e) comprovante de quitação do ITBI incidente; e f) procuração concedendo os poderes específicos necessários ao representante, para a prática dos atos do procedimento.

Inicialmente, havia sido vetado, no texto original da Lei Federal nº. 14.382, o item da lista de documentos obrigatórios que previa a necessidade da apresentação de “ata notarial lavrada por tabelião de notas da qual constem a identificação do imóvel, o nome e a qualificação do promitente comprador ou de seus sucessores constantes do contrato de promessa, a prova do pagamento do respectivo preço e da caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade”, sob o argumento de que essa condição poderia onerar e burocratizar o procedimento extrajudicial, dificultando a rápida regularização pretendida pelo legislador.

Todavia, posteriormente, a lei foi promulgada, com derrubada do veto, reforçando o entendimento no sentido de que a apresentação da ata seria fundamental para referendar a autenticidade da documentação apresentada, concedendo maior segurança na instrução do requerimento perante o Registro de Imóveis.

Neste diapasão, uma vez apresentados os documentos constantes do rol do artigo 216-B, da Lei Federal nº. 6.015/73, com a quitação dos emolumentos cartoriais devidos, o oficial do Registro de Imóveis competente deverá proceder ao registro da propriedade do bem em favor do(a) promitente comprador(a), usando como título o próprio instrumento particular de promessa de compra e venda.

É sabido que, por longo período, milhares de ações de adjudicação compulsória tramitaram e ainda tramitam no Judiciário brasileiro, que vem passando por reformas constantes no intuito da resolução extrajudicial de conflitos, da desjudicialização e da redução do seu acervo processual historicamente vasto.

Neste ínterim, é louvável a instituição, pela Lei Federal nº. 14.382/22, da adjudicação compulsória extrajudicial, que configura, indubitavelmente, alternativa capaz de promover a diminuição de novas ações judiciais desse jaez e, consequentemente, do acervo processual geral, pautado pela transferência da propriedade diretamente pelo Registro de Imóveis, de forma mais ágil e acessível aos interessados, comparativamente à via judicial.

Concluindo, em tese, a efetivação do procedimento extrajudicial da adjudicação compulsória tem o condão de promover maior celeridade e menor custo para uma questão imobiliária, que certamente demandaria anos para ser resolvida na seara judicial, a despeito das dificuldades práticas que podem surgir, em razão de se tratar de inovação recente. De todo modo, aqueles que se encontram em situação equivalente a uma das acima relatadas, uma vez preenchidos os requisitos do artigo 216-B, da Lei Federal nº. 6.015/73, não devem se furtar a adotar a opção extrajudicial da adjudicação compulsória, eis que se trata de ferramenta hábil e célere para a regularização de imóveis, sendo elogiável, também neste ponto, o propósito da Lei Federal nº. 14.382/22.

GNL - Planejamento Tributário Quais os Limites

Planejamento Tributário: Quais os Limites?

Autor: Guilherme Costa Val
LL.M. em Tributação Internacional pela University of Florida;
Mestre em direito pela Faculdade de Direito Milton Campos;
Especialista em Direito Tributário pelo IEC PUC/MG;
Professor do LL.M. em Tributação Internacional da PUC/MG.

1. Introdução

A zona cinzenta quanto aos limites dos planejamentos fiscais ou tributários tem se feito presente ao longo dos últimos anos.

Fraude à lei, simulação, simulação relativa, dissimulação, negócio jurídico indireto, propósito negocial e essência sobre a forma são conceitos usualmente utilizados quando se trata do tema, na tentativa de regulamentar transações que, apesar de lícitas do ponto de vista estrutural e formal, causam estranheza à figura abstrata do “homem médio”, parecendo-lhe violar a lei em espírito, em essência.[1]

Com o desenvolvimento econômico, o Brasil passou a gerar transações mais sofisticadas e em muitos casos as referidas sofisticadas operações, realizadas em um sistema altamente globalizado, são analisadas mediante escrutínio descontextualizado e pouco transparente da administração pública e, mesmo revestindo-se de toda legalidade formal, acabam por ser rechaçadas sob o manto da mácula de prática simulada.

Tal análise tem se arrimado em institutos civilísticos, especialmente ante a inaplicabilidade do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional como norma geral antielisiva ou antievasiva, haja vista a ausência de sua regulamentação, porém, a jurisprudência e doutrina têm dado maior ênfase ao instituto da simulação quando da análise de planejamentos complexos. Ao dispor sobre o tema, o Código Civil determina que o negócio simulado é nulo, porém, o negócio dissimulado pode subsistir caso seja válido em substância e forma, veja-se:

“Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.
§ 1o Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:
I – aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;
II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;
III – os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.”

Parte da doutrina tradicional acerca de simulação – instituto que já se fazia presente no Código Civil de 1916 – apresenta visão restritiva sobre o tema, vinculando a análise da simulação única e exclusivamente ao preenchimento ou não dos aspectos formais do negócio.

Trata-se de visão positivista que torna dispensável a análise de qualquer outro aspecto inerente à operação, os fundamentos negocial e econômico seriam irrelevantes: para que se verifique simulação, há que se fazer presente uma declaração enganosa, contrária à vontade das partes, visando iludir terceiros. Assim, havendo declaração de vontade fiel aos fatos (v.g. a cisão ou incorporação declarada efetivamente ocorreu já que devidamente operacionalizada dentro das formas legais) não há que se falar em simulação. Trata-se, em última análise, da prevalência da forma sobre a substância.[2]

No entanto, há também a aplicação mais ampla do conceito de simulação, tal como defendida por Orlando Gomes[3]. Referida corrente passou a afastar o formalismo para implementar a visão causalista da simulação. Assim, o negócio perfeito do ponto de vista formal, porém visto como não verdadeiro do ponto de vista da causa do negócio jurídico acabaria por se enquadrar no tipo simulação.

De acordo com a corrente causalista, o negócio jurídico atípico, sem sentido do ponto de vista econômico social, poderia ser enquadrado como simulação independentemente de sua regularidade formal ou aparente legalidade.

No que diz respeito à análise dos casos concretos, o antigo Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, hoje CARF, manifestou-se por vezes acerca do tema e, após passear por alguns dos conceitos mencionados, parece ter deixado de adotar a corrente clássico-formalista ou voluntarista[4] acerca da simulação, prevalente até ano de 1996, para passar a estabelecer a necessidade de aplicação ampla do instituto da simulação quando da análise de reorganizações societárias e planejamentos tributários.[5]

Atualmente, reina no CARF a exigência de substância econômica ou logística para a validade de operação lícita do ponto de vista formal, porém, vistas de certa forma como atípicas. De acordo com os mais recentes entendimentos do CARF, havendo respaldo econômico, logístico ou negocial capaz de arrimar operação lícita, não há que se falar em nulidade. Por outro lado, reorganizações societárias ou planejamentos realizados dentro dos ditames da lei, porém, sem qualquer propósito negocial além da redução da carga tributária, tendem a ser considerados ilícitos. Há, pois, simulação, quando presente uma desconformidade entre o desejado e o praticado (não se deseja uma incorporação, mas realiza-a em virtude de objetivo final oculto, qual seja, obtenção de benefício fiscal), porém, tal subjetiva desconformidade vem sendo analisada sob a ótica do propósito do negócio praticado.

De fato, avaliar a regularidade formal do negócio não requer grandes esforços, bastando-se confrontar os atos praticados com as formalidades prescritas em lei, contudo, como se deve analisar a presença dos demais elementos subjetivos da simulação no negócio praticado? Nessa linha, questiona-se: seria válida a análise da simulação mediante utilização do teste do propósito negocial ou haveria outras formas mais eficazes de se identificar a presença de indícios de simulação nos negócios jurídicos?

2. Compreendendo o “Business Purpose Test” e seus Principais Padrões

O teste do propósito negocial foi criado no ano de 1935 pela Suprema Corte dos Estados Unidos quando da necessidade de se avaliar a existência de “substância” em operação praticada por determinada contribuinte.
Em Gregory v. Helvering[6], a contribuinte (Sra. Gregory) detinha 100% das ações da empresa United Mortgage Corporation (United). A referida empresa, por sua vez, detinha 1.000 quotas da empresa Monitor Securities Corporation (Monitor). O valor de mercado das quotas excedia o valor contábil e a Sra. Gregory pretendia alienar as referidas 1.000 quotas de forma a ter acesso direto (pessoa física) ao resultado financeiro da alienação.

O primeiro método para tanto seria a distribuição das quotas da Monitor à contribuinte a título de dividendos e posteriormente sua alienação pela Sra. Gregory. Contudo tal opção resultaria na tributação dos dividendos no valor das quotas[8] e a Sra. Gregory visava atrair a incidência da benéfica tributação sobre ganhos de capital. A Contribuinte, então, criou uma nova empresa e utilizou-se de mecanismo do Código Tributário dos EUA[9] que previa isenção nos casos em que determinada empresa, parte de reorganização societária, distribuísse a seus acionistas quotas que detinha em outra empresa, também parte da reorganização societária e obteve, assim, a benéfica tributação do ganho de capital[10].

Ao analisar a operação, a administração pública (“Commissioner”) decidiu por questioná-la sob a alegação de que a empresa criada no contexto da reorganização societária (Averill) jamais possuiu substância e que, sendo assim, sua existência deveria ser desconsiderada para efeitos fiscais.[11]

O caso chegou à Suprema Corte norte-americana e o tribunal entendeu que, não obstante o direito do contribuinte tentar reduzir o montante de tributos a serem recolhidos ou até mesmo evitá-los legalmente, havia que se verificar se o ato praticado se coadunava com a intenção do legislador.

Nessa esteira, a Suprema Corte dos EUA viu-se diante do mesmo dilema que aflige os tribunais brasileiros hodiernamente (como analisar a presença de substância no negócio jurídico realizado?) e utilizou-se do “business purpose test” para solucionar o impasse: inexistia propósito negocial (causa) que embasasse a existência da Averill já que a mesma serviu como mero instrumento criado com o escopo único de viabilizar o tratamento benéfico concedido a tais

reorganizações societárias, deixando de existir em seguida sem que jamais tivesse participado de qualquer outra operação, razão pela qual a reorganização operada deveria ser desconsiderada.

Após o julgamento, a doutrina do propósito negocial acabou por desdobrar o teste em três principais padrões[11]:

Transações fictícias (sham transactions): o teste do propósito negocial é aplicado para desconsiderar a existência de uma entidade e/ou o benefício por ela obtido (direta ou indiretamente) quando a sociedade não apresenta razão de existir, servindo ao propósito único de promover economia fiscal;

Transações fora da Realidade Econômica: aplica-se a casos em que a transação é praticada dentro dos contornos da lei e envolve relações reais (a empresa não é um mero veículo e não possui caráter transitório), porém a transação ou reorganização revela-se economicamente irreal na medida em que não teria sido realizada não fossem os resultados fiscais obtidos;

“Step Transactions”: Um determinado resultado em um caminho linear não pode ser alterado em razão de utilização de caminho tortuoso injustificado (utilização de série de operações). O teste do propósito negocial pode ser aplicado para se determinar a necessidade ou não da desconsideração de passos adotados em separado para que se analise a transação como um todo, em atenção a seu resultado final.

Em que pesem os notórios preconceitos em relação à utilização do teste no Brasil, parece nítida a semelhança entre suas facetas e a doutrina causalista da simulação – como se demonstrará a seguir -, na medida em que as indagações a serem realizadas com fito a identificar-se a presença de indícios de prática simulada são, via de regra, as mesmas. Note-se que, usualmente, o teste do propósito negocial representa meramente a idéia de que a validade das operações, especialmente quando atipicamente resultam em benefício tributário, pode ser avaliada também pelo ponto de vista de sua razoabilidade econômico-social podendo e devendo o teste ser acompanhado de outras análises, de acordo com o caso[12].

De toda forma, vejamos exemplos da utilização da doutrina causalista de simulação e do teste do propósito negocial na prática:

3. A presença do “business purpose test” nas Decisões Administrativas

No ano de 1996 o antigo Conselho de Contribuintes apreciou recurso voluntário (Caso Rexnord[13]) onde se discutia a presença de simulação em operações do contribuinte (série de cisões que culminaram com incorporação atípica, ou reversa, das empresas superavitárias pelas deficitárias).

Na oportunidade, o Conselho pugnou pela desconsideração da operação sob o argumento que, nas palavras do Relator, “a empresa rica (…) sistematicamente incorporou de fato as empresas pobres. (…) Extintas foram as outras empresas, cindidas parcialmente e por ela incorporadas.”

A análise do Relator, conselheiro Verinaldo Henrique Silva, abordou intrinsecamente parâmetros típicos do “business purpose test” na medida em que confrontou a documentação acostada aos autos relativa à declaração de vontade expressa com os efeitos efetivamente almejados. Obviamente, para delimitar os efeitos almejados, caso diverso do que ostensivamente indicado, houve que se questionar os propósitos de tal operação nos exatos termos dos testes sugeridos pelo “Business Purpose Test”: não havia razão logística ou negocial para as operações realizadas e, de fato, não havia continuidade dos negócios por parte da empresa incorporadora, mas sim pela incorporada. Não havia, pois, substrato econômico capaz de respaldar a operação.

No julgamento do caso Martins[14], que também tratou de incorporação às avessas, a lógica utilizada foi a mesma; contudo, o relator entendeu pela existência de substrato econômico na operação. Necessariamente houve que se questionar a causalidade da operação, utilizando-se alguns dos testes inerentes à doutrina do “business purpose”: há razão logística ou econômico-social para a operação? Em sessão de 01/02/2012 o CARF também aplicou implicitamente o teste do propósito negocial ao julgar caso rotulado como operação de “casa-e-separa” supostamente realizada para eliminar ganho de capital em operação de alienação de ativos disfarçada de parceria (caso Klabin).[15]

Na referida hipótese o conselheiro relator se convenceu da presença de simulação pelas seguintes razões: a) a associação entre as empresas durou menos de 30 dias, logo o intuito de parceria jamais teria existido; b) as operações, da forma como se apresentam, somente foram realizadas em virtude de benefícios fiscais que proporcionaram (não-tributação do ganho de capital e aproveitamento de ágio), não possuindo maiores substratos logísticos ou econômico-sociais.

Trata-se, portanto, de clara utilização de testes da doutrina do propósito negocial (transações fora da realidade econômica) na tentativa de se definir a real vontade das partes ou a relação de causalidade, oculta na espécie por série de atos jurídicos. Note-se que o relator também se utilizou do teste da continuidade do empreendimento[16] para determinar que o ínfimo prazo entre o “casa e separa” denotaria presença de divergência entre a vontade formalmente materializada e a realidade dos atos.

Ainda em recente acórdão, o CARF identificou como simulada a operação de subscrição de ações de uma sociedade anônima com integralização em dinheiro e registro de ágio e subsequente retirada da sócia originária com resgate das ações e posterior cancelamento. Ao apreciar o caso, o conselheiro relator tratou expressamente da necessária causalidade em negócios jurídicos alegando que “Para se identificar a natureza do negócio praticado pelo contribuinte, deve ser identificada qual é a sua causalidade(…). Assim, negócio jurídico sem causa não pode ser caracterizado como negócio jurídico indireto.” [17]

No caso em apreço, o relator entendeu pela falta de substância que embasasse as transações: a estrutura não teria sido utilizada caso o aproveitamento do ágio fosse inviável e os fatos demonstram a inexistência de continuidade do empreendimento, em contraste à vontade declarada. Mais uma vez, como teria o relator atingido tal conclusão? A base do raciocínio é que um negócio jurídico sem causa nada mais é que um negócio jurídico sem propósito. Para identificar a causalidade do negócio fez-se mister definir sua realidade econômico-social: há propósito econômico-social ou logístico para tal transação? A realidade se adéqua ao objetivo declarado?

Seria a transação realizada caso o benefício tributário não existisse? Os fatos demonstram continuidade do empreendimento formalmente apresentado?

Todas as indagações realizadas – mesmo que quase sempre de forma implícita – são partes do teste do propósito negocial e as conclusões materializadas na decisão são, em verdade, respostas à aplicação dos referidos testes, em seus vários padrões, quando da análise da causalidade das operações para determinar a presença ou não de simulação.

Há mais. Em situação envolvendo exportação para pessoa vinculada que, supostamente, realizaria a revenda do produto no exterior[18], o Conselho de Contribuintes também chegou a aplicar claramente o teste do propósito negocial, perquirindo pela substância logística e estrutural da empresa controlada no exterior, localizada em paraíso fiscal. No caso o Conselho entendeu que a ausência de estrutura operacional das empresas controladas pela Contribuinte-Recorrente, aliada ao porte dos negócios praticados e ausência de comprovação das operações de compra e revenda dos produtos denotaria simulação e julgou pelo afastamento da aplicação de normas de preços de transferência e manutenção da cobrança tributária como se a operação se desse diretamente entre a empresa brasileira e o consumidor final no exterior.

Novamente, trata-se de clara aplicação do “business purpose test” para identificar-se a presença de interposição de empresa fictícia, a qual teria sido criada visando redução de tributação no Brasil e acúmulo de rendimentos em paraíso fiscal. Neste caso, o teste da realidade econômica do negócio e o teste da empresa fictícia foram aplicados para que a presença de simulação fosse avaliada e conclui-se pela desconsideração do negócio aparente.

4. A presença intrínseca do “business purpose test” em Decisão Judicial sobre o Tema – O caso Josapar

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região também enfrentou o tema quando da análise de Apelação nos autos de n. 2004.71.10.003965-9/RS. Tratou o caso de operação de incorporação às avessas na qual a Supremo Industrial, detentora de substancial prejuízo fiscal acumulado, incorporou a empresa Suprarroz S.A., superavitária. Nessa esteira, os prejuízos fiscais da Incorporadora foram utilizados para reduzir o imposto de renda e CSLL nos exercícios seguintes. Posteriormente, a Josapar – Joaquim Oliveira Participações S.A. incorporou a Suprarroz S.A.

Em sua apelação Josapar insistiu pela inexistência de simulação sob o argumento de que a operação teria sido realizada dentro dos contornos legais e formais previstos na legislação, com a efetiva incorporação e extinção da empresa incorporada.

No entanto, aplicando claramente o teste do propósito negocial, o TRF4 alegou que, no caso, a operação de incorporação tal como apresentada era economicamente inviável, tendo sido realizada única e exclusivamente para viabilizar o aproveitamento dos prejuízos fiscais da incorporadora.[19] Ou seja, aplicou-se o teste do propósito negocial na “modalidade” realidade econômica do negócio. A Josapar interpôs recurso ao Superior Tribunal de Justiça, que manteve o posicionamento do Tribunal Regional e, mesmo sem entrar no mérito da questão, deu a entender que a análise da realidade econômica, logística, contábil e operacional realizada pelo TRF4 teria sido a forma correta de se avaliar a existência de simulação no caso, ao dispor que:

“(…)11. Para chegar à conclusão de que houve simulação, o Tribunal de origem apreciou cuidadosa e aprofundadamente os balanços e demonstrativos de Supremo e Suprarroz, a configuração societária superveniente, a composição do conselho de administração e as operações comerciais realizadas pela empresa resultante da incorporação. Concluiu, peremptoriamente, pela inviabilidade econômica da operação simulada.” [20]

Parece-nos que o STJ tangenciou o tema e acabou por validar a utilização do teste do propósito negocial (mesmo que aliado a outros testes e análises) como instrumento, diríamos, quase intrínseco, à identificação de prática simulada. Isso porque a análise de demonstrações contábeis em atenção à configuração societária e operações praticadas pela empresa são essenciais à compreensão da realidade econômico-social da operação que, no caso, foi interpretada como irreal sob tais pontos de vista. Seria o negócio aparente economicamente viável? Há razões econômico-sociais ou logísticas que suportem a transação?

Ou seja, aplicação direta do teste do propósito negocial visando à compreensão da realidade econômica do ato praticado para, então, confrontar-se a realidade com a vontade declarada/aparente. Mais uma vez, a teoria causalista encontrou respaldo no teste do propósito negocial quando da verificação de indícios de prática simulada.

5. O Problema das transações ou reorganizações realizadas em cadeia e a aplicabilidade da “step transaction doctrine” como teste inerente à análise de simulação

Outra questão comumente analisada em reorganizações societárias diz respeito às operações praticadas em sequência, em alguns casos, com intervalos mínimos entre si e que parecem, à primeira vista, terem sido implementadas com intuito único de obtenção de vantagem fiscal.

O problema que afligiu as cortes norte-americanas e hoje começa a assolar os tribunais administrativos brasileiros reside em decidir quando a série de operações deve ser analisada separadamente ou em conjunto em atenção ao resultado ou objetivo final. Seriam os testes da “step transaction doctrine” aplicável no Brasil?

Não obstante a constante utilização equivocada do termo no Brasil, a “step transaction doctrine” teve sua origem nos EUA para determinar que o resultado que seria auferido em uma transação direta ou linear não poderia ser distorcido pela interposição de uma série de operações, caso tais operações fossem reprovadas em análises (ou testes) sugeridas pelos tribunais[21]. Com a aplicação dos testes, ante a eventual reprova ou tipificação em um dos padrões sugeridos, as operações estariam sujeitas à aplicação da “step transaction doctrine” e seriam analisadas de forma global e não individual.[22]

Apesar de reconhecerem a inexistência de teste universal capaz de solucionar o problema, as variações sobre os testes para a aplicação da “step transaction” assim foram consolidadas nos EUA: Teste da obrigação contratual: Representa o teste mais restrito. As operações individuais são desconsideradas em atenção ao resultado final se, à época da primeira operação existisse obrigação contratual prevendo as demais etapas;[23]

Teste do resultado final: Representa o teste mais abrangente. As operações individuais são desconsideradas ante à presença de indícios de que fazem parte de uma única operação visando determinado resultado final (intenção das partes); [24]

Teste da Interdependência: As operações individuais são desconsideradas caso se constate que sejam interdependentes de tal forma que as relações legais criadas em uma transação revelam-se estéreis sem a presença das demais etapas.[25]

Desde então as alternativas vêm sendo aplicadas de acordo com o caso na tentativa de determinar a necessidade ou não de desconsideração da operação. Impende salientar que a mera presença de operações em sequência por si só não atrai a aplicação da referida doutrina. A desconsideração da individualidade das transações apenas ocorre em caso de tipificação (ou reprova, dependendo do teste aplicado) em algum dos testes sugeridos. No Brasil os tribunais administrativos têm se utilizado da análise sistêmica das reorganizações societárias em atenção à doutrina ampla de simulação, desconsiderando operações individuais consideradas enganosas:

“OPERAÇÕES ESTRUTURADAS EM SEQUÊNCIA. LEGALIDADE A realização de operações estruturadas em seqüência, embora individualmente ostentem legalidade do ponto de vista formal, não garante a legitimidade do conjunto de operações, quando fica comprovado que os atos praticados tinham objetivo diverso daquele que lhes é próprio. Recurso voluntário negado.”[26]

De fato a utilização do instituto da simulação parece ser suficiente à análise e controle das reorganizações societárias realizadas em cascata, todavia, quer nos parecer que, como aspecto inerente ao teste do propósito negocial, determinados testes da “step transaction doctrine” são usualmente aplicados pelo fisco e até mesmo pelo CARF. Dentre tais testes destacam-se o teste do resultado final e o teste da interdependência das operações, haja vista tratarem-se de questionamentos válidos sobre aspectos nevrálgicos da substância das operações: seriam as operações autosuficientes ou apenas justificar-se-iam caso os próximos passos fossem tomados? Há indícios de que as operações foram planejadas para atingir resultado diverso do que seria alcançado em transação “linear”? Existia obrigação contratual prevendo diversos passos a serem adotados?

Afora situações em que a presença da simulação salta aos olhos, os referidos testes serão necessariamente utilizados, mesmo que intrinsecamente, para se atingir conclusão quanto à presença ou não de simulação e, consequentemente, necessidade ou não de desconsideração da individualidade das transações.

Frise-se: não há outra forma de se analisar aspectos subjetivos de transações em cascata realizadas dentro de estrutura de reorganização societária ou planejamento tributário. A subjetividade da “intenção das partes” não permite elucubrações distorcidas e tampouco aplicação de correntes que privilegiam a forma sobre a substância.

A título de exemplo, vale explorar o caso típico do “casa-e-separa” em que dois contribuintes formam sociedade na qual se aportam imóvel e recursos financeiros e, em curto período de tempo, a sociedade se desfaz com a troca dos bens em liquidação, evitando a incidência do imposto sobre transmissão de bens imóveis – ITBI. Via de regra, a doutrina e os tribunais enxergam em tal estrutura a presença de simulação ou dissimulação: a verdadeira intenção das partes é transferir a propriedade do imóvel sem o pagamento do imposto devido. No entanto, quais os critérios utilizados para se atingir tal conclusão? Como identificar a verdadeira intenção das partes?

Ora, utiliza-se como base à referida conclusão o curto período de tempo da sociedade formada, situação que denotaria a ausência de propósito negocial (descontinuidade do empreendimento ou empreendimento fictício) que justificasse a existência da nova sociedade, já que possui caráter meramente provisório e irreal.

Ou seja, até mesmo em relação à operação apontada à unanimidade como simulada pela doutrina e jurisprudência o propósito negocial e os testes da sugeridos pela “step transaction doctrine” apresentam-se como essenciais ao embasamento da conclusão subjetiva de que “a verdadeira intenção das partes é transferir a propriedade do imóvel sem o pagamento do imposto devido.”

Parece-nos, pois, que os testes da “step transaction doctrine” acabam apresentando-se como questionamentos inescapáveis quando da análise de transações em cascata, podendo ser utilizado preventivamente no momento da criação e implementação de planejamentos e devendo ser aplicado na verificação de eventual simulação em caso concreto.

6. Conclusões

Em conclusão, verifica-se que, caso a aplicação do conceito de simulação no controle de planejamentos seja mantida, o teste do propósito negocial e a “step transaction doctrine” revelam-se essenciais análise à sua aplicabilidade em casos de reorganizações societárias ou planejamentos tributários e vêm sendo utilizados implicitamente pelos julgadores.

A aplicação explícita dos testes e a solidificação de doutrina dispondo sobre suas facetas, contudo, auxiliariam à transparência dos julgamentos como também orientariam as próprias reorganizações societárias e planejamentos tributários, os quais, até então, têm se apresentado como verdadeiros voos no escuro aos aplicadores do direito.

Vale frisar que não se pretende sugerir a adoção de estrangeirismos, mas apenas a aplicação clara e expressa de testes que, apesar de inicialmente desenvolvidos na América do Norte, acabaram sendo parcialmente “importados” para justificar autuações referentes a planejamentos tributários.

Também cumpre salientar que os testes não são exclusivos e/ou excludentes, ou seja, demais situações não englobadas pelos mesmos podem e devem ser avaliadas quando da análise de planejamentos tributários que apresentem indícios de simulação.

De mais a mais, parece claro que, mantida a linha de entendimento atual quanto a validade dos planejamentos tributários, mesmo que não adotados explicitamente, os questionamentos propostos pelo “business purpose /step transaction doctrine” materializam-se como instrumentos de apoio aos aplicadores do direito, especialmente no que tange à realização de testes de aderência em reorganizações societárias e planejamentos tributários.

[1] Exemplo comum eram as operações denominadas de “casa e separa” em que os contribuintes transmutavam a compra e venda de imóvel em integralização ao capital de empresa com subsequente dissolução da sociedade e entrega de valores em espécie ao antigo proprietário do bem, visando evitar a incidência do ITBI).
[2] “Na simulação relativa, pelo contrário, as partes pretendem realizar um negócio, mas de forma diferente daquele que se apresenta. Há divergência, no todo ou em parte, no negócio efetivamente efetuado. Aqui existe ato ou negócio dissimulado, oculto, que forma um complexo negocial único.”.
“(…)a simulação relativa, pelo contrário, as partes pretendem realizar um negócio, mas de forma diferente daquele que se apresenta. Há divergência, no todo ou em parte, no negócio efetivamente efetuado. Aqui existe ato ou negócio dissimulado, oculto, que forma um complexo negocial único.” Venosa, Silvio, Direito Civil: Parte Geral, 4ª ed. São Paulo, Atlas, 2004. pag. 481
[3] GOMES,Orlando. Introdução ao direito civil.Rio de Janeiro, Forense, 1977, pag. 517.
[3] GODOI,Marciano Seabra, Rev. direito GV, vol.8 no.1, São Paulo Jan/Jul 2012
[4] GODOI,Marciano Seabra, Rev. direito GV, vol.8 no.1, São Paulo Jan/Jul 2012
[5] Primeiro Conselho de Contribuintes.Câmara Superior de Recursos Fiscais. Acórdão n.01-02.107, Relator: Verinaldo Henrique da Silva, D.O.U. 02/12/1996

[6] Gregory v. Helvering, Supreme Court of the United States, 1935. 293 U.S. 46
[7] A distribuição de dividendos, via de regra, é tributada nos EUA.
[8] “Internal Revenue Code”, §112(g), 1928.
[9] Seguindo ditames do “Internal Revenue Code” a Sr. Gregory constituiu a empresa Averill Corporation (Averill)  em 18 de setembro de 1928 e, três dias depois, a United transferiu para a Averill as 1.000 quotas da Monitor. Em troca, todas as ações da Averill foram emitidas em favor da Sra. Gregory (trata-se de atalho que teve o mesmo efeito da emissão das quotas da Averill em favor  da United e posterior distribuição de tais quotas a título de dividendos pela United à Sra. Gregory). Em 24 de Setembro Averill foi dissolvida e liquidada mediante a distribuição de todo seus ativos (quotas da Monitor) à sua única acionista, Sra. Gregory. Nenhum outro negócio foi realizado pela Averill.

A Contribuinte alegou que a transferência para a Averill constituía parte de processo de reorganização, eis que a United controlava a Averill, e, portanto, a distribuição das quotas da Averill a ela seria isenta.  As quotas da Averill recebidas tomaram como base parte do valor contábil das quotas da United (US$ 57.325,45) e, imediatamente, a Sra. Gregory alienou as quotas da Monitor por US$133.333,33 apurando ganho de capital de US$76.006,88 (alíquotas inferiores à tributação de dividendos).
[10] A desconsideração da Averill geraria tributação integral do valor das quotas (US$133.333,33) a título de “ordinary income” (alíquotas superiores às utilizadas na tributação de ganhos de capital).
[11] McDaniel, McMahon, Simmons, Federal Income Taxation of Corporations, 3a ed., Foundation Press, pág. 584
[12] Há, contudo, requerimento específico por parte do fisco norte-americano quanto à utilização do “business purpose test” na averiguação de regularidade das cisões. Treasure Regulation §1.355-2(d)(3)(ii). Além disso, via de regra, o teste do propósito negocial é apenas um dos testes utilizados na verificação de substância em reorganizações societárias, as quais ainda podem ser objeto dos seguintes testes, dentre outros:

  1. Teste do Empreendimento/ramo de negócio ativo;
  2. Teste de atividade do empreendimento adquirido nos últimos 5 anos;
  3. Teste da continuidade da participação societária após a reestruturação;
  4. Teste da continuidade do empreendimento.

[13] . Primeiro Conselho de Contribuintes. Câmara Superior de Recursos Fiscais. Acórdão n.01-02.107, Relator: Verinaldo Henrique da Silva, D.O.U. 02/12/1996.
[14] Sétima Câmara/Primeiro Conselho de Contribuintes, Acórdão 107-07.596, sessão de 14.04.2004.
[15] Terceira Câmara/1ª Turma Ordinária CARF, Acórdão 130100.810, sessão de 01.002.2012
[16] Parte da doutrina norte-americana considera o teste da continuidade do empreendimento (“COBE”) como um dos testes do propósito negocial (Jasper L. Cummings “in” “COBE Acquisition is a business purpose”, Tax Analysts).
[17] Acórdão 1401-00.155, D.O.U. de 01.02.2011
[18] Quinta Câmara/Primeiro Conselho de Contribuintes, Acórdão 105-017.083, sessão de 25.06.2008.
[19] Nas palavras do Relator, Des. Dirceu de Almeida Soares: (…)“No caso, era inviável economicamente a operação de incorporação procedida, tendo em vista que a aludida incorporadora existia apenas juridicamente, tendo servido apenas de “fachada” para a operação, a fim de serem aproveitados seus prejuízos fiscais – cujo aproveitamento a lei expressamente vedava.” TRF 4ª Região, AC n. 2004.71.10.003965-9/RS, D.O.U. de 06.09.2006
[20] REsp 946.707/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, J. de 25.08.2009, D.O.U. de 31.08.2009
[21] Minnesota Tea Co. V. Helvering, 302 U.S. 609, 613 (1938).
[21] Note-se que nos EUA a “Step Transaction doctrine” pode, em determinadas situações, beneficiar o contribuinte.
[23] Commissioner v. Gordon, 391 U.S. 83, 96 (1968).
[24] King Enterprises Inc. v. United States, 418 F. 2d 511 (1969).
[25] American Bantam Car Co. v. Commissioner, 11 T.C. 397 (1948).
[26] Sexta Câmara/Primeiro Conselho de Contribuintes, AC n. 106-17.149, D.J.U. de 30.03.2009


O prazo de vigência do acordo de acionistas

O prazo de vigência do acordo de acionistas e suas hipóteses de rescisão

O acordo de acionistas, previsto no artigo 118 da Lei das Sociedades por Ações (“LSA”) constitui um contrato celebrado entre os sócios a fim de regular o seu relacionamento no âmbito da sociedade.
Por conta da previsão expressa deste tipo de contrato na LSA, ele de fato é mais comumente utilizado no âmbito das sociedades por ações. Entretanto, nada impede que ele também seja utilizado para disciplinar o relacionamento dos sócios de uma sociedade limitada, de uma sociedade simples ou até mesmo de uma sociedade em conta de participação.
Como já dito, o acordo de sócios é um contrato celebrado em um contexto societário, que visa regular certos direitos e obrigações entre eles, principal e mais usualmente relacionados a: i) compra e venda de participação societária; ii) preferência para adquiri-la; iii) exercício do direito de voto; iv) exercício do poder de controle (art. 118, LSA 1 ). Nas palavras de Modesto Carvalhosa:

Trata-se, o acordo de acionistas, de um contrato submetido às normas comuns de validade e eficácia de todo o negócio jurídico privado, concluído entre acionistas de uma mesma companhia, tendo por objeto a regulação do exercício dos direitos referentes às suas ações, tanto no que concerne ao controle como ao voto dos minoritários ou, ainda, à negociabilidade dessas ações. (CARVALHOSA, Modesto. Acordo de Acionistas – Homenagem a Celso Barbi Filho, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 23)

1 LSA, Art. 118. Os acordos de acionistas, sobre a compra e venda de suas ações, preferência para adquiri-las, exercício do direito a voto, ou do poder de controle deverão ser observados pela companhia quando arquivados na sua sede.
§ 1º As obrigações ou ônus decorrentes desses acordos somente serão oponíveis a terceiros, depois de averbados nos livros de registro e nos certificados das ações, se emitidos.
§ 2 º Esses acordos não poderão ser invocados para eximir o acionista de responsabilidade no exercício do direito de voto (artigo 115) ou do poder de controle (artigos 116 e 117).
§ 3º Nas condições previstas no acordo, os acionistas podem promover a execução específica das obrigações assumidas.
§ 4º As ações averbadas nos termos deste artigo não poderão ser negociadas em bolsa ou no mercado de balcão.
§ 5º No relatório anual, os órgãos da administração da companhia aberta informarão à assembléia-geral as disposições sobre política de reinvestimento de lucros e distribuição de dividendos, constantes de acordos de acionistas arquivados na companhia.
§ 6º O acordo de acionistas cujo prazo for fixado em função de termo ou condição resolutiva somente pode ser denunciado segundo suas estipulações.
§ 7º O mandato outorgado nos termos de acordo de acionistas para proferir, em assembléia-geral ou especial, voto contra ou a favor de determinada deliberação, poderá prever prazo superior ao constante do § 1 º do art. 126 desta Lei.
§ 8º O presidente da assembléia ou do órgão colegiado de deliberação da companhia não computará o voto proferido com infração de acordo de acionistas devidamente arquivado.
§ 9º O não comparecimento à assembléia ou às reuniões dos órgãos de administração da companhia, bem como as abstenções de voto de qualquer parte de acordo de acionistas ou de membros do conselho de administração eleitos nos termos de acordo de acionistas, assegura à parte prejudicada o direito de votar com as ações pertencentes ao acionista ausente ou omisso e, no caso de membro do conselho de administração, pelo conselheiro eleito com os votos da parte prejudicada.
§ 10. Os acionistas vinculados a acordo de acionistas deverão indicar, no ato de arquivamento, representante para comunicar-se com a companhia, para prestar ou receber informações, quando solicitadas.
§ 11. A companhia poderá solicitar aos membros do acordo esclarecimento sobre suas cláusulas.

O acordo de acionistas, portanto, é um contrato parassocial, que compreende contratos entre a partes que regulam ou complementam seus direitos e obrigações como sócios de determinada sociedade e por isso são considerados coligados ao contrato social, ou acessórios deste.
Tendo em vista que os acordos de sócios, de um modo geral, implicam restrições ao direito do acionista, seja quanto ao exercício do direito de voto ou quanto à livre negociação de suas ações, muito se indaga (e se diverge) acerca da possibilidade de sua resolução antes do prazo e, para os acordos sem prazo determinado ou determinável, a sua resolução imotivada pelos seus signatários.
E, diante das divergências existentes, há anos, na doutrina e na jurisprudência, este artigo visa, especificamente, abordar referido tema.


Modalidades de Acordo de Acionistas

Para a maior parte dos estudiosos do assunto, a discussão acerca da possibilidade de resolução dos acordos de acionistas, passa, inicialmente, pela análise de sua modalidade, isto é, se estamos falando de um acordo de voto ou, alternativamente, de um acordo de bloqueio.
Os acordos de voto basicamente são os acordos que visam orientar o exercício do direito de voto dos contratantes, de forma que nas assembleias gerais da Companhia, todos votem exatamente no mesmo sentido. Também chamados de pooling agreements, estes tipos de acordo geralmente preveem a realização de uma reunião prévia entre os acionistas a fim de que eles se manifestem antecipada e livremente sobre a matéria a ser submetida à deliberação da assembleia para que, definida a vontade da maioria, todos eles, na assembleia geral propriamente dita, votem da mesma forma.
Já os acordos de bloqueio são aqueles que impõem restrições à transferência ou negociação de ações, tais como aqueles que versam sobre o direito de preferência em caso de alienação, opção de compra ou venda, tag along, drag along e lock-up 2 . A respeito das modalidades de acordos de acionistas e a da relevância desta distinção para o tema ora em discussão, vale conferir as lições de Nelson Eizirik:

Quando o acordo versa sobre o voto ou sobre o exercício do poder de controle, há uma comunhão de escopo entre as partes, caracterizando-se, então, como um contrato plurilateral, no qual os interesses dos signatários não são opostos, mas dirigem-se a uma finalidade comum, há entre eles affectio societatis, consistente na vontade continuada de colaboração. Por outro lado, se o acordo trata de restrições à alienação de ações – direito de preferência, opção de compra ou venda, por exemplo -, não existe uma comunhão de escopo, caracterizando-se como um contrato bilateral, em que os interesses não são confluentes. Tal distinção é fundamental para o deslinde de 2 (duas) questões, mais adiante analisadas: a possibilidade de resilição unilateral dos acordos sem prazo determinado e a resolução por quebra da affectio. (EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada. Volume II. 3ª edição revista e ampliada. Artigos 80 a
São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 307)

2 Existe ainda, por parte de alguns doutrinadores, uma terceira modalidade, que seria o acordo de controle, que nada mais é do que um desdobramento do acordo de voto para o exercício do controle societário, que nada mais é do que o poder de eleger a maioria dos administradores e deter preponderância nas deliberações sociais (art. 116, LSA).

A Resolução Antecipada dos Acordos de Acionistas com Prazo Determinado As controvérsias existentes acerca dos acordos celebrados por prazo determinado se restringem acerca da possibilidade de rescisão motivada antes do prazo. Isso porque o artigo 118, §6º da LSA dispõe expressamente que o acordo de acionistas cujo prazo for fixado em função de termo ou condição resolutiva somente pode ser
denunciado segundo suas estipulações.

Ou seja, sendo o acordo de prazo determinado ou de prazo determinável e nele havendo cláusula resolutiva, seja em razão de termo ou da implementação de condição, o acordo somente pode ser rescindindo ou denunciado nas hipóteses nele previstas.
Assim, em nosso entendimento, sem maiores esforços interpretativos, não é admitida a sua denúncia imotivada antes de decorrido seu prazo ou implementada a sua condição resolutiva.
Já para os acordos em que, apesar de terem prazo determinado ou determinável, não há cláusula resolutiva, acreditamos ser possível a sua resolução antecipada de forma motivada, pela via judicial ou arbitral, conforme o caso, tão somente em caso de incompatibilidade insanável entre os sócios, tais como nos casos de falência, insolvência, condenação por crime de corrupção ou trabalho escravo, ou no caso de inadimplemento.
De fato, nas sociedades com contornos mais ‘pessoais’, tais como as sociedades limitadas e as sociedades de capital fechado tais motivos podem se enquadrar na perda da famosa affectio societatis.
Com efeito, a perda da affectio societatis, trata-se de um argumento complexo, pois, como sustentar que há a affectio para a manutenção da condição de sócio, mas, por outro lado, ela não existe para sustentar a condição de parte do acordo de acionistas?
A fim de evitar essa conveniente dualidade, nosso entendimento é no sentido de que, se o acionista pretende se desvincular do acordo ao argumento da quebra da affectio societatis, tal quebra deve ser ‘forte’ e ‘motivada’ o suficiente não apenas para pôr fim ao acordo de sócios, mas também para fazer cessar o vínculo societário entre as partes, implicando, portanto, a própria dissolução ou retirada da sociedade.
Já nas sociedades de capital aberto ou naquelas fechadas, formadas por diversos investidores que se unem apenas com vistas à percepção de lucros, acreditamos que esse motivo (ausência de affectio) não seria apto a motivar a rescisão antecipada do acordo, haja vista nem a sociedade, tampouco o acordo foi contratado em função dessa premissa, isto é, da afinidade entre os sócios.

É com base nesse mesmo raciocínio que se torna relevante a distinção entre os acordos de voto e os acordos de bloqueio.
É aceitável que os acordos de voto, por materializarem a convergência de interesses para o alcance do interesse social, sejam rescindidos pela perda da affectio societatis. Por outro lado, diante do aspecto sinalagmático dos acordos de bloqueio, a affectio de maneira alguma poderia ensejar a sua rescisão.
sentido, concluímos, com relação aos acordos de acionistas celebrados por prazo determinado ou determinável, sua rescisão pode ocorrer no fim do seu prazo ou nas hipóteses nele previstas, ex vi do §6º do artigo 118, LSA ou por motivo justo, assim entendido como aquele que torna insustentável a manutenção tanto do vínculo contratual, quanto do vínculo societário entre as partes envolvidas seja por falta de affectio (como ocorre, geralmente, nos acordos de voto ou nas sociedades de caráter mais ‘pessoal’) ou por inadimplemento (como ocorre, geralmente, nos acordos de bloqueio ou nas sociedades de caráter mais ‘patrimonial’).
Como se vê, a resolução do acordo de sócios antes do prazo ou fora das hipóteses nele previstas deve ser analisada e concedida, em sede judicial ou arbitral, em função dasparticularidades de cada caso, da modalidade do acordo, da estrutura da sociedade envolvida e, principalmente, da busca dos motivos que levaram à contratação e à proposta de desfazimento da avença.

A quebra do acordo antes de seu termo final ocorrerá por vontade dos signatários ou por decisão judicial em face de provocação do acordante irresignado com a sua permanência. Assim, eventuais dificuldades surgem
somente com referência a esta última hipótese, qual seja, a quebra unilateral do contrato pelo retirante. Essa saída só ocorrerá de forma fortemente motivada nascida da quebra de confiança entre os signatários ou da forte inconveniência de lá permanecer. A desconfiança ou impossibilidade pode nascer de uma série enorme de situações, tais como abuso de poder, atuação em conflito de interesse, brigas pessoais, agressões etc. A essa enorme variedade de situações a doutrina e a jurisprudência denominam como a perda da affectio societatis ou perda dos motivos que levaram à assinatura do acordo, a qual se transformou
em desavenças pessoais de vários graus de animosidade. (…)
Grande parte da dificuldade hoje encontrada pelos doutrinadores e pelos julgadores decorre da distorção ocorrido com o significado do termo affectio societatis. A indagação surge no momento em que o interesse de determinado signatário é suficientemente forte para justificar o rompimento do contrato; não porque lhe seja desinteressante continuar a fazer parte do pacto, mas porque a imagem ou permanência vinculativa
lhe prejudicam seriamente. Esse seria o caso quando um de seus signatários é declarado inadimplente, processado, declarado falido ou objeto de escândalo. Em situações desse tipo, estaria atendido o interesse
que justificou a formação do grupo de voto? Provavelmente não. Porém, devemos ter em mente que essa quebra, nas sociedades anônimas de capital aberto, pode se diferenciar das motivações ocorrentes em uma
companhia formada por poucos sócios, na qual o conhecimento entre os acionistas em muito difere dos signatários de uma companhia de participação pulverizada. (MATTOS FILHO. Ary Oswaldo. Direito dos
Valores Mobiliários. Rio de Janeiro: FGV, 2015, p. 481-482)

Resolução dos Acordos celebrados por Prazo Indeterminado Sem dúvida, a maior divergência jurisprudencial e doutrinária reside nos acordos firmados por prazo indeterminado. A corrente mais ‘civilista’ sustenta que por se tratar o acordo de sócios, precipuamente, de um contrato, ele submete-se à disciplina geral do direito das obrigações, em que impera o princípio de que ninguém pode ser obrigado a associar-se a outrem perpetuamente, motivo pelo qual seria permitido ao acionista denunciá-lo a qualquer momento, de forma imotivada, mediante envio de prévia notificação aos demais.
Em que pese esse entendimento, adotamos uma postura divergente, mais ‘moderna’, de que não é lícito ao acionista denunciar o acordo de forma unilateral e imotivada, pois tal prática seria incompatível com o desenvolvimento empresarial e a estabilidade dos negócios jurídicos. Nas palavras de Maria Isabel de Almeida Alvarenga:

A pretendida desconstituição não pode ser reconhecida. Não há como invocar no caso aqui examinado direito à resilição unilateral porque sem prazo de vigência o ajuste. As normas que assim rezam, devem ser
interpretadas à luz do moderno desenvolvimento dos negócios que envolvem organizações societárias; (…) Esse entendimento moderno e consentâneo com a complexidade do mundo comercial repercutiu na
doutrina e na jurisprudência; deve ser prestigiado, uma vez que seria manifestamente injurídico – e por isso mesmo injusto, a impedir fosse prestigiado pelo bom direito – pudesse uma das partes, após receber
substancial aporte de capital e transferência de tecnologia, sem mais aquela, unilateralmente, pelo exercício da verdadeira denúncia vazia, considerar desfeito o acordo que pouco tempo antes fora celebrado.
(ALVARENGA, Maria Isabel de Almeida. Impossibilidade de resilição unilateral do acordo de acionistas por prazo indeterminado: jurisprudência comentada. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros, v. 108, p. 186-196, out./dez. 1997, p. 187-188)

Afinal, como bem esclarece Carlos Orecesi da Costa, caso a denúncia vazia fosse admitida de forma indiscriminada, e neste caso ele cita como exemplo os acordos de bloqueio, tais acordos seriam “papeluchos inúteis”:

“Basta ver que, se qualquer acionista pudesse a qualquer tempo, romper o acordo de bloqueio, ele seria um papelucho inútil. Todos o assinariam hoje, e bastaria que um, no dia seguinte, não o desejando cumprir,
promovesse a sua rescisão unilateral. Muito menos razoável seria se pudermos imaginar que o acordo já possa ter sido observado, noutras ocasiões, até mesmo em benefício do rescindente” (COSTA, Carlos Orecesi, in Revista de Direito Mercantil, n. 60, out/dez, 1985, p. 38 e seg).

Não estamos aqui a negar o caráter necessariamente temporário dos contratos, mas, como pontua Carlos Augusto da Silveira Lobo, em se tratando de acordo de acionistas, é muito mais razoável concluir que as partes quiseram obrigar-se enquanto se mantivessem as condições básicas que as conduziram a celebrar o pacto.

Desta feita, mais uma vez, orientamos no sentido de que, também nos acordos celebrados por prazo indeterminado, não seria possível a denúncia vazia, sob pena de gerar-se uma insegurança jurídica e até mesmo abuso de direito por qualquer de seus signatários, cenário este claramente indesejável para a estabilidade dos negócios jurídicos e desenvolvimento econômico do país.
Assim, nos parece mais razoável e compatível com o atual ambiente de negócios e grau de maturidade do mercado de capitais brasileiro que esses acordos possam ser resolvidos por iniciativa de uma das partes tão somente de forma motivada (inclusive pela perda affectio, se ela, de fato, tiver sido um dos motivos pelos quais o acordo foi firmado, em sua origem, ou por inadimplemento) ou quando os ajustes nele contidos passarem a não mais fazer sentido, ante as alterações das condições – endógenas ou exógenas – que as levaram a contratá-lo inicialmente.


Conclusões

Ante a todo o exposto, as conclusões a que chegamos são as seguintes: (a) a análise do prazo, possibilidade e condições de rescisão do acordo de acionistas deve levar em conta, inicialmente, (i) o contexto societário no qual ele foi celebrado, isto é: se a companhia é aberta ou fechada, se é composta
por muitas ou poucas pessoas, se essas pessoas são conhecidas umas das outras ou não, se há um único controlador ou um bloco de controle etc.; e (ii) a modalidade de acordo, se acordo de voto ou acordo de bloqueio. (b) para os acordos de voto, que, de uma forma geral, são concebidos para
formalizar uma vontade ou um objetivo comum entre os seus signatários, a celebração por prazos mais longos ou até mesmo por prazo indeterminado é aceitável, pois neste caso, o acordo funcionaria como uma ‘extensão’ do próprio contrato social;
(c) para os acordos de bloqueio, de natureza mais sinalagmática e patrimonial, existe menor aceitação quanto a pactos de longa duração ou de vigência indeterminada, pois diante da oposição de interesses entre as partes, a máxima de que “ninguém pode se obrigar indeterminadamente perante
outrem” prevaleceria; (d) os acordos – de voto ou de bloqueio – de prazo determinado que disporem de
cláusula resolutiva (seja ela a termo ou condição), só podem ser rescindidos segundo as condições nele previstas (art. 118, §6º, LSA); (e) os acordos de prazo determinado sem cláusula resolutiva podem ser rescindidos, por inadimplemento ou incompatibilidade insustentável entre seus signatários, não sendo admitida, em nenhuma hipótese a sua “denúncia vazia”; (f) os acordos de prazo indeterminado também não se sujeitam à resilição unilateral e, portanto, podem ser resolvidos apenas de forma justificada, seja pela perda da affectio ou por inadimplemento substancial, em atendimento ao princípio da autonomia da vontade, da força obrigatória dos contratos e da estabilidade dos negócios jurídicos.

Fato é que, independentemente do tipo societário e de se tratar de acordo de voto ou de bloqueio, a rescisão do acordo de sócios fora das hipóteses nele previstas, deve partir da análise dos motivos que, inicialmente, levaram as partes à sua celebração e, posteriormente, à sua ruptura. Se por justiça entende-se que “é dar a cada um o que é seu” ou, ainda, “tratar desigualmente os desiguais”, acreditamos que somente assim que o julgador estará apto a entregar a devida e justa prestação jurisdicional àqueles que a buscarem.

Bibliografia:

LAMY FILHO, Alfredo e PEDREIRA, José Luiz Bulhões (coord.) Direito das Companhias. Vol I.
Rio de Janeiro: Forense, 2009.
COSTA, Carlos Orecesi, in Revista de Direito Mercantil, n. 60, out/dez, 1985,
ALVARENGA, Maria Isabel de Almeida. Impossibilidade de resilição unilateral do acordo de
acionistas por prazo indeterminado: jurisprudência comentada. Revista de Direito
Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros
EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada. Volume II. 3ª edição revista e ampliada. Artigos
80 a 137. São Paulo: Quartier Latin, 2021
MATTOS FILHO. Ary Oswaldo. Direito dos Valores Mobiliários. Rio de Janeiro: FGV, 2015
CARVALHOSA, Modesto. Acordo de Acionistas – Homenagem a Celso Barbi Filho, 2ª ed.
São Paulo: Saraiva, 2015.
CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei das sociedades anônimas. 2º vol. Arts. 75 a 137.
6ª ed. rev. e atual, São Paulo: Saraiva, 2014.
RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Empresa. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
PERA, Alexandre Krause. Prazo de Vigência e Quórum para Modificação do Acordo de
Acionistas. Dissertação de Mestrado da Escola de Direito de São Paulo da Fundação
Getúlio Vargas. 2022.
FILHO, Celso Barbi. Acordo de acionistas: panorama atual do instituto no direito brasileiro
e propostas para a reforma de sua disciplina legal.

Texto de Mariana Gontijo, Head de Societário do GNL Advogados

Citações por meio eletrônico: perspectivas, prazos e pontos de atenção

Citação postal deixou de ser preferencial para convocação do réu ao processo, dando lugar à citação por meio eletrônico.

A comunicação eletrônica dos atos processuais já existia na Lei do Processo Eletrônico (11.419/2006). Contudo, a questão tomou mais força com a Lei do Ambiente de Negócios (14.195/2021), sancionada no dia 26/8/2021. A norma foi criada com o intuito de promover a modernização do ambiente de negócios nacional e estimular o desenvolvimento econômico.

Com ela, se alterou o Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), especialmente o seu artigo 246, §1º, que passou a prever a citação por meio eletrônico, preferencialmente.

Logo, com a mencionada alteração legislativa, a citação postal deixou de ser a maneira preferencial para efetivação do ato de convocação do réu ao processo.

Como consequência da mudança, o parágrafo primeiro do artigo 246 do CPC impôs às empresas públicas e privadas a obrigação de manterem atualizados seus cadastros na Plataforma de Comunicações Processuais (Domicílio Eletrônico) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), (criado pela Resolução 335/20), para efeito de recebimento de citações e intimações.

Essa obrigação alcança qualquer sujeito do processo, inclusive a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e as entidades da administração indireta. As micro e pequenas empresas, em caráter de exceção, deverão manter o endereço eletrônico cadastrado no sistema integrado da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim), decorrendo daí a necessidade de se adequar a nova legislação com agilidade.

A Lei não somente impôs obrigação (de manter atualizado o cadastro) como também listou as consequências para o caso de descumprimento das determinações legais relacionadas à citação.

A exemplo disso, o parágrafo único – A, do artigo 246, do CPC, dispõe que caso não se obtenha do destinatário do ato, em até 3 (três) dias úteis, a confirmação do recebimento da citação eletrônica, caberá a ele, uma vez citado, na primeira oportunidade de falar nos autos, apresentar justa causa para a ausência de confirmação do recebimento da citação enviada eletronicamente, sob pena de multa de até 5% (cinco por cento) do valor da causa, por ato atentatório à dignidade da justiça.

A multa visa coibir prática de ocultação da parte, ou a tentativa de postergação do ato citatório em detrimento da celeridade processual.

Regulamentação tardia:

Embora a Lei que instituiu primeiramente a comunicação de atos processuais seja de 2006 (Lei do Processo Eletrônico), seguida pela Lei do Ambiente de Negócios, de 2021, a citação eletrônica somente veio a ser regulamentada pelo CNJ recentemente, por meio da Resolução nº 455, que instituiu o Portal de Serviços do Poder Judiciário, o Diário da Justiça Nacional e o Domicílio Judicial Eletrônico.

De acordo com o art. 3° da Resolução, o Portal permitirá a efetivação de citações, intimações e comunicações processuais em todos os sistemas de tramitação processual eletrônica a ele conectados.

O art. 2º, por sua vez, define o endereço eletrônico como sendo toda forma de identificação individualizada para recebimento e envio de comunicação/mensagem digital, tal como o correio eletrônico (e-mail), aplicativos de mensagens, perfis em redes sociais, e o Domicílio Judicial Eletrônico.

Já o Domicílio Judicial Eletrônico constitui o ambiente digital para a comunicação processual entre os órgãos do Poder Judiciário e os destinatários que sejam ou não partes na relação processual. É por ele que as intimações e citações ocorrerão.

Como mencionado, o cadastro do Domicílio Judicial Eletrônico será obrigatório para a União, para os Estados, para o Distrito Federal, para os Municípios, para as entidades da administração indireta e para as empresas públicas e privadas (art. 16).

A obrigatoriedade exclui as pessoas físicas e as microempresas e empresas de pequeno porte, mesmo que estas últimas possuam endereço eletrônico cadastrado no sistema integrado da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim).

Quanto às pessoas físicas, a Resolução faculta ao cadastramento do domicílio judicial eletrônico por meio do Sistema de Login Único da PDPJ-Br, via autenticação no serviço “gov.br” do Poder Executivo Federal, com nível de conta prata ou ouro; ou por meio de autenticação com uso de certificado digital.

Também prevê o compartilhamento de banco de dados cadastrais de órgãos governamentais com o órgão do Poder Judiciário, nos termos da legislação aplicável ao tratamento de dados pessoais.

Como funciona essa modalidade de citação, na prática:

Em linhas gerais, o citando receberá a comunicação do endereço eletrônico cadastrado. Uma vez recebida a comunicação, o citando tem o dever de confirmar o recebimento em até três dias úteis (art. 246, § 1º-A, do CPC).

Com a confirmação do recebimento, os efeitos da citação são implementados, sendo que, para efeitos processuais (art. 240 do CPC), a data da citação é a data da confirmação do recebimento pelo destinatário.

Para fins de contagem de prazos processuais decorrentes da citação, deflagra-se o prazo no quinto dia útil seguinte à confirmação (art. 231, IX, do CPC). Não há que se confundir, portanto, a data da efetivação da citação com a data inicial do prazo para a prática de algum ato processual a ela relacionada.

Por outro lado, caso não haja a confirmação do recebimento, considerar-se-á a citação frustrada. Em razão disso, deverão ser buscados os meios tradicionais, como correio ou oficial de justiça (art. 246, § 1º-A, do CPC) para a concretização do ato.

Uma vez citado pela via tradicional posteriormente à citação por meio eletrônico frustrada, deverá o destinatário do ato justificar o motivo da não confirmação da citação por meio eletrônico, eximindo-se, a critério do juiz e a depender da motivação (justa causa), da aplicação da multa de 5%.  

Benefícios e preocupações:

De fato, essa inovação é parte da tendência de modernização e informatização dos atos processuais. Não se nega o ganho que a instituição dos processos eletrônicos trouxe para a celeridade e a economia processual, assim como para a gestão dos prazos pelos advogados.

Em relação à citação eletrônica, a percepção de valor não tende a ser diferente. A título de exemplo, no modelo tradicional, uma citação válida pode levar meses para ser efetivada e confirmada no processo, já que o ato depende de diversos procedimentos burocráticos, desde a expedição do mandado, ao envio pelos correios, a entrega (que pode ser realizada em até 3 tentativas), a devolução do AR, a juntada aos autos e a respectiva certificação, dentre outros.

Com a citação eletrônica todo esse procedimento pode se concretizar em poucos minutos, o que representa, sem sombra de dúvidas, um ganho à celeridade processual, sem falar na economia de papeis, envelopes, toner, impressoras e outros materiais, além de toda a logística envolvida.

Por outro lado, a inovação traz também polêmicas, pontos de atenção e questionamentos. Por exemplo:

  • Há meios seguros de se confirmar o recebimento da citação eletrônica por e-mail pelo seu real destinatário?
  • O banco de dados do Poder Judiciário terá capacidade de armazenamento e segurança cibernética para armazenamento dos dados aderente aos ditames da Lei Geral de Proteção de Dados?
  • Não seria um ônus desmedido impor às pessoas a obrigação de verificar os seus meios de comunicação eletrônica a cada 3 dias, a fim de confirmar o possível e eventual recebimento de citação?
  • O que dizer de pessoas idosas, que por vezes cadastram e-mails de filhos, netos e outros familiares, por exemplo?
  • E se a comunicação for recebida equivocadamente por terceiro que está utilizando computador ou celular de outra pessoa?
  • E se a comunicação não for recepcionada por problemas tecnológicos?
  • Como as empresas e jurídicos internos deverão garantir tanto a atualização do seu cadastro – especialmente no caso daquelas empresas que possuem sede e filiais em diversos locais, como a confirmação do recebimento das citações eletrônicas?
  • Em relação às micro e pequenas empresas, cujo cadastro, nos termos da Lei, seria importado do sistema integrado (Redesim) será que foi considerado pelo legislador que no cadastro da maioria das pessoas jurídicas pode constar um e-mail profissional do contador ou da empresa de contabilidade responsável pela inscrição na Junta, por exemplo?

Ademais, sobre a aplicação da multa, tem-se que o conceito de “justa causa” pura e simples é muito vago para motivar a imposição ou não da penalidade. Afinal de contas, não se sabe o que poderia ser considerado justa causa para o legislador. Seria considerada justa causa um internamento hospitalar? Seria a justa causa uma viagem do responsável em acessar as mensagens? Ou poderia se considerar justa causa simplesmente um motivo honesto, pautado em bons argumentos que levam ao convencimento do Juiz? Ou a definição de justa causa seria aquela prevista no do artigo 223, §1º, do CPC, que a define como “evento alheio à vontade da parte e que a impediu de praticar o ato por si ou por mandatário”.

É preciso uniformidade em relação a isso, para que a definição do que seja ou não considerado justa causa fique a critério discricionário do juiz, sendo tal hipótese causadora de uma indesejável insegurança jurídica.

Preparação e providências:

Em relação às pessoas jurídicas, especialmente em razão do volume de demandas, é importante se antecipar, evitando o pagamento da multa.

Os departamentos jurídicos devem revisar a sua rotina de trabalho, criando métodos que facilitem a aferição das citações por meio eletrônico e o cumprimento dos prazos. A criação de um endereço de e-mail único específico para essa finalidade, pode ser uma medida válida e eficaz.

Junto com ela, recomenda a alocação de colaboradores designados e treinados para receber todas as comunicações por e-mail e confirmá-las, dando o devido direcionamento para cadastro na base de dados e envio ao advogado ou escritório externo responsável por conduzir o processo, com o registro de qual foi a data de confirmação do recebimento da citação, já que a partir dela é que se saberá o termo inicial do prazo para elaboração da defesa.

Outro fator muito importante para garantir a segurança jurídica por parte das empresas é o investimento contínuo em tecnologia, especialmente em sistemas capazes de realizar a captura automatizada de novos processos judiciais, por meio de softwares de gestão jurídica, que permitem a localização dos novos processos ajuizados contra as empresas logo que são distribuídos, como meio de monitoramento e antecipação das citações.

Tal medida tende a evitar a aplicação de multa pela ausência de confirmação do recebimento da citação por meio eletrônico, impedir à aplicação do gravoso efeito da revelia, mas também dar maior eficiência na gestão dos processos e dos prazos processuais.

Afora isso, é importante que se tenha atenção aos prazos previstos na Resolução 455 do CNJ. Segundo o art. 24 da referida Resolução, a partir da disponibilização do Domicílio Judicial Eletrônico e do Portal de Serviços na PDPJ, os interessados terão prazo de 90 (noventa) dias para atualização dos dados cadastrais a serem utilizados pelo sistema, na forma disciplinada no presente normativo.

À presidência do CNJ caberá a divulgação dos requisitos técnicos mínimos exigidos para a transmissão eletrônica dos atos processuais destinados ao Domicílio Judicial Eletrônico e ao Portal de Serviços, sendo que os órgãos do Poder Judiciário terão o prazo de 90 (noventa) dias para a adequação de seus sistemas processuais eletrônicos, de modo a utilizarem os serviços instituídos nesta Resolução, a contar da publicação dos requisitos.

O Portal de Serviços do Poder Judiciário, foi lançado pelo Conselho Nacional de Justiça em 06 de setembro de 2022. Entre as plataformas que serão integradas ao Portal está o chamado Domicílio Judicial Eletrônico, que concentrará e automatizará citações, intimações e outras comunicações processuais enviadas pelo Poder Judiciário a pessoas físicas e jurídicas.

De acordo com as novas informações divulgadas pelo CNJ, o cronograma de disponibilização do Domicílio Judicial Eletrônico foi alterado para dezembro de 2022.

Logo, em se confirmando a data, o prazo de 90 (noventa) dias para que as empresas privadas de médio e grande porte se cadastrem no Portal deve se encerrar em meados de março de 2023.

Vale lembrar que a obrigatoriedade de cadastramento não se aplica às microempresas e empresas de pequeno porte que possuírem endereço eletrônico cadastrado no sistema integrado da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim), e que o cadastro é facultativo para pessoas físicas.

A nossa equipe continuará monitorando a disponibilização de informações relacionadas ao tema e está apta a prestar esclarecimentos adicionais.

Mineração: TFRMs julgadas constitucionais pelo STF

O Supremo Tribunal Federal – STF julgou como constitucionais as taxas de controle, monitoramento e fiscalização das atividades de pesquisa, lavra, exploração e aproveitamento de recursos minerários (TRFM) instituídas por Minas Gerais, Pará e Amapá.

As taxas, que têm como contribuinte a pessoa física ou jurídica autorizada a realizar pesquisa, lavra, exploração ou aproveitamento de recursos minerais, possuem como fato gerador o poder de polícia exercido no momento da venda ou transferência do minério extraído entre estabelecimentos pertencentes ao titular. São exigidas em atenção a tonelada de mineral ou minério bruto extraído (uma a três unidades fiscais do estado por tonelada).

As exigências foram questionadas pela Confederação Nacional da Indústria – CNI mediante três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI’s 4785, 4786, 4787).

O STF julgou as ações improcedentes, materializando entendimento no sentido de que os estados têm competência para instituir taxas para custear a atividade de fiscalização.

A Suprema Corte também considerou constitucional a base de cálculo, já que, de acordo com o STF, seria supostamente arrimada no princípio da proporcionalidade. O valor da cobrança, baseado em presunção de custo da fiscalização, também foi apreciado e julgado constitucional sob o argumento de que o ônus tributário ao patrimônio do contribuinte está graduado de acordo com (i) o faturamento do estabelecimento, (ii) o grau de poluição potencial ou (iii) a utilização de recursos naturais.

A decisão não foi unânime. Restaram vencidos os ministros Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes e André Mendonça, os quais entenderam pela desproporcionalidade das taxas.

Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) afasta a trava de 30% para aproveitamento de prejuízo fiscal em caso de empresa extinta

A 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais – CSRF afastou a trava de 30% usualmente aplicável sobre o aproveitamento de prejuízo fiscal e base negativa da CSLL em situação de extinção da empresa (processo n. 19515.005446/2009-03).

De acordo com o artigo 15 da Lei 9.065/1995, o valor do prejuízo fiscal apurado a partir do encerramento do ano-calendário poderá ser compensado com o lucro líquido ajustado pelas adições e exclusões previstas em lei, observado o limite máximo, para compensação, de 30% do referido lucro líquido ajustado.

Importante notar que a trava de 30% não é aplicável ao prejuízo e sim ao lucro real, de forma que é possível que o prejuízo fiscal acumulado venha a ser integralmente compensado em um só período.

A constitucionalidade da controversa trava de 30% já foi questionada pelos contribuintes tendo sua validade declarada pelo Supremo Tribunal Federal nos Recursos Extraordinários nº’s 344.994 e 591.340.

No entanto, nas referidas oportunidades, o STF não chegou a avaliar a constitucionalidade da imposição da trava de 30% para aproveitamento de prejuízos sob a ótica de uma pessoa jurídica que está a encerrar suas atividades.

Obviamente, a justificativa para manutenção da trava de 30%, qual seja, a possibilidade de compensação do prejuízo a qualquer tempo, desde que haja lucro, deixa de existir nos casos em que a empresa será encerrada, pois não haverá outra oportunidade para aproveitamento dos prejuízos em questão.

Exatamente nesse sentido, o voto do Conselheiro Relator, Alexandre Evaristo Pinto destaca que a lógica da trava não se aplicaria na situação fática de sucessão da pessoa jurídica, já que não há uma continuidade das atividades e, assim, não há possibilidade de utilização posterior dos prejuízos.

De se destacar, ainda, a clara distinção, realizada pelo voto vencedor, em relação ao entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da trava de 30%, destacando que a aplicabilidade da trava em relação a pessoa jurídica que está a encerrar suas atividades não foi analisada pelo STF.

STJ reconhece validade da penhora de bem de família de fiador de locação

A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu que “é válida a penhora do bem de família de fiador apontado em contrato de locação de imóvel, seja residencial, seja comercial, nos termos do inciso VII, do art. 3º da Lei n. 8.009/1990”, seguindo o entendimento recentemente firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em seu Tema 1127. O referido entendimento do STJ constou do Informativo nº. 740 do citado Tribunal, publicado em 13/06/2022, por ocasião do julgamento do REsp 1.822.040-PR, de relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão, em 08/06/2022, e da definição do seu Tema Repetitivo 1091.

Para nosso sócio Alexandre Gonçalves, a definição do Tema, por estar calcada na prevalência da autonomia privada e prima pela observância do princípio da boa-fé objetiva, sedimentando a validade da penhora do bem de família do fiador nas relações locatícias, independentemente de sua natureza (residencial ou comercial). Isso propiciará, sem dúvida, segurança jurídica ao mercado imobiliário, uma vez que os locadores não mais estarão expostos a eventual subjetividade, após a constituição da garantia.

Entendimento em sentido contrário (reconhecendo a impenhorabilidade do imóvel do fiador) impactaria diretamente o livre empreendedorismo do locatário, bem como o direito de propriedade do fiador, visto que a fiança é obviamente a garantia menos onerosa e a mais aceita pelos locadores. Em vista disso, o custo contratual aumentaria e reduziria consideravelmente o número de possíveis locatários com poder de locação.

Assim, resta pacificado, junto aos Tribunais Superiores (STJ e STF), o entendimento de que os locadores podem penhorar bem de família do fiador de contrato de locatário inadimplente, independentemente da natureza da locação (residencial ou comercial), confirmando mais segurança às relações contratuais imobiliárias.

#GNLExpresso #direitoimobiliario #penhoradebens #stj #locacaodeimoveis #locacaocomercial #locacaoresidencial

EUA alteram regras sobre direito a créditos tributários sobre tributos pagos no exterior: impactos para empresas que atuam no Brasil

Os Estados Unidos publicaram novas regras quanto à possibilidade de tomada de créditos, por empresas norte-americanas, em relação à tributos por elas recolhidos no exterior.

As novas regras limitarão os créditos tributários que, de acordo com as normas anteriores, eram claramente creditáveis e possivelmente levantarão pontos de questionamento em relação aos contribuintes que se enquadrem nas rotinas em questão.

Alterações:

As novas regras limitam o direito a tomada de créditos tributários relativos à tributos recolhidos no exterior que possuam semelhança com o sistema tributário norte-americano, inclusive em relação ao (i) Princípio “Arm’s Length” (não aplicado pelo Brasil), (ii) às regras de dedutibilidade de despesas e (iii) às regras de definição de fonte da renda percebida por não-residentes.

A eventual tributação na fonte sobre serviços e “royalties” em atenção à residência do pagador (fonte de pagamento) não serão creditáveis nos EUA, exceto se houver previsão quanto ao direito ao crédito em Acordos contra Dupla Tributação firmados pelos EUA.

As regras introduziram um novo requisito jurídico, determinando que o tributo recolhido no exterior somente será tratado como creditável pelos EUA caso exista nexo suficiente entre o país estrangeiro e as atividades ou investimentos do contribuinte que ensejam a referida tributação no exterior.

Os Regulamentos trazem testes para identificar se há presença de nexo com base nas regras norte-americanas sobre tributação de não-residentes e alocação de renda de residentes.

Ao verificar o direito ao creditamento, os EUA também aplicarão o “Net Gain Test”, segundo o qual, para gerar crédito tributário nos EUA, o tributo estrangeiro deve caracterizar um evento tributável, incidir sobre receitas brutas e permitir a recuperação de custos.

Impactos para empresas americanas que atuam no Brasil

Novas normas poderão exigir maior atenção de multinacionais que possuam negócios no Brasil e sujeitem-se ao pagamento de serviços e royalties para os EUA:

  • A retenção de Imposto de Renda em relação à pagamentos realizados por fonte Brasileira à empresa norte-americana, pela prestação de serviços diretamente dos EUA à empresa Brasileira, provavelmente não gerarão direito a crédito nos EUA.
  • A retenção de Imposto de Renda sobre pagamentos de “royalties” realizados do Brasil para os EUA somente gerarão créditos caso o intangível seja utilizado ou explorado no Brasil.

Multinacionais norte-americanas sujeitas à normas brasileiras de preços de transferência poderão ter o direito ao crédito questionados pelos EUA, haja vista a não utilização do Princípio “Arm’s Length” pelo Brasil.

Entenda os impactos de Corredores Ecológicos em empreendimentos

Entenda os impactos de Corredores Ecológicos em empreendimentos

Esta análise visa explicar o significado e impacto dos corredores ecológicos, incorporados à legislação brasileira nos anos 90, pelo Decreto nº 750, já revogado, e que atualmente está disposto na Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), nº 9.985/2000, que em seu art. 25 determina que “as unidades de conservação, exceto Área de Proteção Ambiental e Reserva Particular do Patrimônio Natural, devem possuir uma zona de amortecimento e, quando conveniente, corredores ecológicos”.

Pretende-se ainda estabelecer um paralelo entre a necessidade de implantação de corredores ecológicos para proteção da biodiversidade e as questões sociais e econômicas envolvidas, sob a ótica do instituto da propriedade privada, direito assegurado pela Constituição Federal de 1988, conforme o artigo 5°, inciso XXII.

O que é um corredor ecológico

Reconexão. Preservação. Conservação. Essas palavras podem dizer muito sobre a função dos Corredores Ecológicos, que são instrumentos de gestão e ordenamento territorial, com o objetivo de garantir a manutenção dos processos ecológicos nas áreas de conexão entre Unidades de Conservação.

Eles podem ser entendidos como áreas que unem os fragmentos florestais ou unidades de conservação separados por interferência humana, como estradas, agricultura, ou outros empreendimentos. Os corredores ecológicos surgem como verdadeiras vias de reconexão entre duas ou mais áreas preservadas que têm, entre si, zonas já destituídas de suas características naturais. Após estabelecido o corredor, as áreas auxiliam na movimentação de animais e na polinização de espécies vegetais.

Na visão dos próprios órgãos ambientais, o propósito maior desta estratégia é proporcionar a integração entre as comunidades e as Unidades de Conservação, compatibilizando a presença da biodiversidade, a valorização da sociobiodiversidade e as práticas de desenvolvimento sustentável no contexto regional.

Os pilares da sustentabilidade

É cada vez mais comum ouvirmos a expressão sustentabilidade. Entretanto, o termo é usualmente restrito à questão ambiental pura e simples, muitas vezes por desconhecimento sobre se significado. Não se pode considerar o desenvolvimento sustentável sem as questões econômicas e sociais somadas às ambientais, pois o desmembramento desses pilares não resulta em desenvolvimento.  Todo o entendimento e, consequentemente as ações, devem ser voltadas para os três pilares da sustentabilidade: social; econômico; e ambiental.

A preocupação da lei com o Direito Adquirido e a questão econômico-social

A criação de unidade de conservação e, consequentemente de corredores ecológicos que as unam, está estabelecida na Lei nº 9.985/2000. A referida Lei, ao prever as diretrizes de criação, implantação e gestão das unidades de conservação estabeleceu no art. 22-A:

“Art. 22-A. O Poder Público poderá, ressalvadas as atividades agropecuárias e outras atividades econômicas em andamento e obras públicas licenciadas, na forma da lei, decretar limitações administrativas provisórias ao exercício de atividades e empreendimentos efetiva ou potencialmente causadores de degradação ambiental, para a realização de estudos com vistas na criação de Unidade de Conservação, quando, a critério do órgão ambiental competente, houver risco de dano grave aos recursos naturais ali existentes.”

Vejamos que há uma previsão expressa do legislador para que haja o respeito às atividades econômicas já em andamento, inclusive agropecuária, bem como obras públicas, ainda que somente licenciadas, para que seja estabelecida a criação das unidades de conservação. Por óbvio, a observância e a ressalva dessas peculiaridades devem ser aplicadas aos corredores ecológicos, posto que inerentes às unidades de conservação.

Conclusão

Jamais se negará a importância dos corredores ecológicos como meio de dispersão de espécies, recolonização de áreas degradadas, permitindo o fluxo gênico e a viabilidade de populações que demandam mais do que o território de uma unidade de conservação para sobreviver. Também não se pode negar que são uma forma de compensar os impactos negativos da intervenção humana no meio ambiente, garantindo que áreas fragmentadas possam ser conectadas. Plantas e animais são diretamente impactados pela fragmentação de ambientes. No caso dos animais, eles são impedidos de circular livremente por grandes áreas, sendo necessário cruzar ambientes sem seu habitat natural para chegar a outro fragmento.

Porém, é preciso analisar os impactos que a definição territorial desses corredores irá causar na sociedade e na economia envolvidas, de forma, como adiantado, a equilibrar o tripé que forma a sustentabilidade. De notar-se, como citado, que a própria Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que disciplina os corredores ecológicos, menciona ressalvas que devem ser observadas quando da criação das unidades de conservação.

As atividades econômicas e agropecuárias já existentes são itens considerados pela Lei como exceção quando se trata da intervenção que deva ser feita na propriedade privada e na iniciativa privada. E isso tem uma razão de ser. Se para a criação de um corredor ecológico for necessário o comprometimento de uma atividade agropecuária, industrial ou comercial, por exemplo, somente o pilar ambiental estaria sendo atendido, e não se alcançaria a sustentabilidade. Os aspectos sociais e econômicos ficariam enormemente prejudicados, em detrimento do ambiental, e o desequilíbrio seria patente, com as consequências dele advindas.

Por isso é importante, quando da implementação de um corredor ecológico, que haja prévia e acurada discussão, com participação efetiva de todos os atores, seja da sociedade civil, seja dos proprietários das áreas afetadas, empresários, pecuaristas e outros, para que seja encontrada a melhor alternativa locacional para a definição territorial do corredor ecológico, inclusive com a justa indenização àqueles que forem afetados pela implantação.